Untitled

Mas só descobri que, além de não saber que aspecto eu tinha agora, eu jamais soubera. As fotos antigas não ajudaram. Como todas as boas fotos, elas escondiam a verdade.
“Um livro criativo e impossível
de largar, com questões sérias
sobre a ausência de profundi-
dade num mundo cor-de-rosa.
Egan tem inteligência de sobra.
E sentimento também.”

“Um livro que induz a refl etir so-
bre nossa confi ança nas imagens,
e o que revelamos no processo.”

“Sombrio, extremamente ambicioso. Perverso e sarcasti-camente engraçado.” Elle (EUA) Olhe para mim é
interessante, perspicaz
e engraçado.”
personagens secundários, construindo uma conclu- UMA HISTÓRIA, OLHE PARA MIM É UM T R A D U Ç Ã O D E ADALGISA CAMPOS DA SILVA SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ Olhe para mim / Jennifer Egan ; tradução Adalgisa Campos da Silva. - 1. ed. - Rio de Janeiro : Intrínseca, 2014. 432 p. ; 23 cm.
Tradução de: Look at meISBN 978-85-8057-477-7 1. Romance americano. I. Silva, Adalgisa Campos da. II. Título.
Todos os direitos desta edição reservados à EDITORA INTRÍNSECA LTDA.
Rua Marquês de São Vicente, 99/3o andar22451-041 – GáveaRio de Janeiro – RJTel./Fax: (21) 3206-7400www.intrinseca.com.br Caminhamos através de nós mesmos, encontrando ladrões, fantasmas, gigantes, velhos, jovens, esposas, viúvas, irmãos do amor. Mas sempre encontrando-nos a nós mesmos. Após o acidente, fiquei menos visível. Não falo no sentido óbvio de que fui a menos festas e me afastei dos olhares gerais. Ou não só isso. Quero dizer que, depois do acidente, fiquei mais difícil de ver.
Em minha lembrança, o acidente adquiriu uma beleza dura, deslumbrante: o sol branco, a volta lenta no ar como se eu estivesse naquela xícara do parque de diversões (meu brinquedo favorito), sentindo o corpo se mover mais de-pressa que o veículo que o continha e em sentido contrário. Então um clarão com uma explosão de estilhaços quando fui ejetada pelo para-brisa, ensan-guentada e assustada, sem entender.
A verdade é que não me lembro de nada. O acidente aconteceu à noite durante um temporal de agosto, num trecho deserto de estrada que corta cam-pos de milho e soja, a alguns quilômetros de Rockford, Illinois, minha cidade natal. Pisei no freio e meu rosto bateu no para-brisa, e eu apaguei na hora. Dessa forma, fui poupada da aventura de ver meu carro saindo da estrada e entrando num milharal, capotando várias vezes, pegando fogo e por fim explo-dindo. Os air bags não funcionaram; eu poderia processar o fabricante, claro, mas, uma vez que eu estava sem o cinto de segurança, talvez tenha sido bom eles não terem funcionado, ou eu poderia ter sido decapitada e a emenda fica-ria pior que o soneto. O vidro temperado de fato aguentou o impacto da mi-nha cabeça, portanto, embora eu tenha quebrado todos os ossos do rosto, qua-se não tenho cicatrizes visíveis.
Devo a vida ao que se conhece como “Bom Samaritano”, alguém que me tirou das ferragens do veículo em chamas tão prontamente que só o meu ca-belo se queimou, alguém que me deitou com delicadeza à beira do milharal, chamou uma ambulância, informou minha localização com alguma precisão e depois, com um autossumiço que eu acho perverso, para não dizer pouco ame-ricano, preferiu se afastar anonimamente a receber o crédito por essas admirá-veis façanhas. Um motorista que passava apressado, esse tipo de coisa.
A ambulância me levou para o Hospital Rockford Memorial, onde caí nas mãos de um Dr. Hans Fabermann, extraordinário cirurgião reconstrutor. Quando recobrei a consciência, quatorze horas depois, era o Dr. Fabermann que estava sentado ao meu lado, um homem idoso com um maxilar largo, anguloso, e tufos de cabelo branco nas orelhas, embora eu não tenha visto quase nada disso naquela noite — eu mal enxergava. Calmamente, o Dr. Fabermann explicou que eu tive sorte. Havia fraturado costelas, braço e perna, mas não tinha nenhuma lesão interna. Meu rosto estava no meio do que ele chamou de “período de ouro”, antes que o “inchaço grotesco” se instalasse. Se operasse imediatamente, teria alguma vantagem com relação à “assimetria grosseira” — a saber, o descolamento do maxilar superior do crânio e do ma-xilar inferior do “terço médio da face”. Eu não tinha ideia de onde estava nem do que me havia acontecido. Meu rosto estava dormente, minha visão era dupla e embaçada e eu tinha uma estranha sensação ao redor da boca, como se meus dentes superiores e inferiores estivessem deformados. Senti uma mão sobre a minha e percebi então que minha irmã, Grace, estava à cabeceira. Per-cebi a vibração do seu horror, e isso provocou em mim um desejo familiar de acalmá-la: Grace, encostada em mim toda encolhidinha na minha cama duran-te uma tempestade, o cheiro de cedro, folhas molhadas. Está tudo bem, eu queria dizer. É um período de ouro.
— Se não operarmos agora, vamos ter que esperar cinco ou seis dias para o edema diminuir — disse o Dr. Fabermann.
Tentei falar, aquiescer, mas nenhuma parte móvel da minha cabeça se me- xia. Produzi um daqueles gemidos suspirantes de personagens de cinema mor-rendo por ferimentos de guerra. Então fechei os olhos. Mas aparentemente o Dr. Fabermann entendeu, porque me operou naquela noite.
Após doze horas de cirurgia — durante a qual oitenta parafusos de titânio fo-ram implantados nos ossos esmagados do meu rosto para ligá-los e prendê-los; após eu ter sido cortada de orelha a orelha no tampo da cabeça para o Dr. Fabermann poder puxar para baixo a pele da minha testa e prender novamen-te os ossos das minhas maçãs do rosto à parte superior do meu crânio; após terem sido feitas incisões dentro da minha boca para ele poder conectar os meus maxilares inferior e superior; após onze dias durante os quais minha irmã tremia ao lado da minha cama de hospital como um anjo apreensivo enquanto seu marido, Frank Jones, que eu detestava e que me detestava, ficava em casa com as minhas duas sobrinhas e o meu sobrinho —, tive alta do hospital.
Vi-me numa estranha encruzilhada. Eu havia passado a juventude esperan- do a chance de fugir de Rockford, Illinois, e fiz isso assim que pude. Minhas visitas foram raras, para desgosto de meus pais e minha irmã, e todas foram impetuosas, impacientes e curtas. Na minha vida real, tal como eu pensava nela, eu tinha escondido ativamente a minha ligação com Rockford, dizendo às pessoas que eu era de Chicago, isso quando chegava a falar. Mas por mais que eu desejasse voltar para Nova York depois do acidente e andar descalça no carpete branco e fofo do meu apartamento do vigésimo quinto andar de fren-te para o East River, o fato de eu morar sozinha não me permitia. Eu estava com a perna direita e o braço esquerdo engessados. Meu rosto acabava de en-trar na “fase curativa irritada”: manchas pretas chegavam até o peito, o branco dos meus olhos era um vermelho monstruoso e minha cabeça estava inchada do tamanho de uma bola de basquete com o tampo cheio de pontos (um avan-ço em relação aos grampos usados inicialmente). Minha cabeça estava parcial-mente raspada e os cabelos que me restavam, chamuscados, malcheirosos e caindo aos tufos. Dor, felizmente, não era problema. Danos aos nervos me deixaram quase toda dormente, sobretudo dos olhos para baixo, embora eu tivesse dores de cabeça infernais. Queria continuar perto do Dr. Fabermann, embora ele insistisse, com a clássica autodepreciação do Meio-Oeste, que eu encontraria um cirurgião equivalente ou superior a ele em Nova York. Mas Nova York era para os fortes, e eu estava fraca — muito fraca! Dormia quase o tempo todo. Parecia adequado recuperar as minhas forças num lugar que eu sempre associara aos mansos, aos fracos e aos inúteis.
Assim, para espanto dos amigos e colegas da minha cidade, para sofrimen- to da minha irmã, cujo marido se recusava a me receber sob o seu teto (não que eu pudesse ter suportado isso), ela tomou providências para que eu me mudasse para a casa de uma velha amiga de nossos pais, Mary Cunningham, que morava logo a leste de Rock River, na Ridgewood Road, perto da casa onde fomos criadas. Meus pais já tinham se mudado havia muito para o Ari-zona, onde os pulmões de papai se dissolviam lentamente por causa de um enfisema e onde minha mãe viera a acreditar no poder de certas pedras de formatos estranhos, que ela arrumava sobre o peito arfante dele à noite en-quanto dormia.
— Por favor, deixe que eu vá — implorou-me minha mãe no telefone, tendo reunido sachês cheios de ervas, plumas e dentes. Mas não, eu disse. Por favor, fique com papai.
— Vou ficar bem — garanti a ela —, Grace vai cuidar de mim. E mesmo com a minha estranha voz grasnada, ouvi uma determinação familiar a mim, e sem dúvida à minha mãe. Eu cuidaria de mim mesma. Sempre fiz isso.
A Sra. Cunningham tornara-se uma velha desde que eu a conhecera como a senhora que usava uma vassoura para enxotar as crianças do bairro que ten-tavam apanhar os grandes peixes dourados do lago turvo do seu quintal. Os peixes, ou seus descendentes, ainda estavam lá, visíveis em lampejos de um branco salpicado de dourado em meio a um emaranhado de musgo e ninfeias. A casa cheirava a poeira e flores mortas, os armários eram cheios de chapéus velhos. As vidas do falecido marido da Sra. Cunningham e de seus filhos que moravam longe continuavam naquela casa, adormecidas no sótão preenchido de cedro, o que sem dúvida explica por que ela, uma velha com quadril defei-tuoso, ainda vivia lá, enfrentando aquela escada, quando a maioria de suas amigas viúvas jogadoras de bridge já tinha se mudado havia muito para apar-tamentos elegantes. Ela me colocou na cama do quarto de uma de suas filhas e parecia desfrutar o renascimento da segunda maternidade, trazia-me chás e sucos que eu bebia numa caneca de bebê, calçava-me sapatinhos de tricô e me alimentava com purê de damasco Gerber, que eu comia com vontade. Ela mandou o garoto que cuidava do gramado subir com a tevê para o meu quar-to e, à noite, se recostava na cama de solteiro ao lado da minha, aquelas canelas brancas e cheias de veias aparecendo sob a bainha do seu roupão de banho atoalhado. Juntas assistíamos ao noticiário local, no qual descobri que, até em Rockford, gangues de drogas haviam começado a dominar as ruas e tiroteios de dentro de veículos em movimento eram a norma. — Quando penso em como esta cidade era — resmungava a Sra. Cunnin- gham enquanto assistia, referindo-se aos anos do pós-guerra quando ela e o marido, Ralph, haviam escolhido Rockford acima de todas as cidades americanas como o lugar ideal para construírem o seu lar. “A comunidade mais próspera da nação”, teria dito um antigo crítico cha- mado Roger Babson, consagrando-a; Mary Cunningham chegara até a levar um livro bolorento à minha cama, espetando o dedo torto e trêmulo na pró- pria citação. Senti sua amargura, seu desgosto com o grave erro de cálculo que a deixava agora, em sua solidão, obrigada pela memória e pela experiência a amar um lugar que começara a desprezar.
Foram quatro semanas até eu sair da casa para fazer qualquer coisa a mais do que juntar meus vários membros e entrar no carro de Grace para ir me con-sultar com o Dr. Fabermann e seu colega, Dr. Pine, que cuidava dos meus ossos fraturados. Quando ele colocou um salto no gesso da minha perna, me aven-turei a pôr o pé na rua pela primeiríssima vez com os óculos escuros com es-tampa de zebra que Mary Cunningham usara nos anos sessenta, a própria Mary ao meu lado, para caminhar com cuidado pelo meu antigo bairro. Eu não tinha voltado àquela parte da cidade desde que Grace fora para a faculdade, época em que meus pais compraram uma casa menor num terreno a leste de Rockford, perto da autoestrada interestadual, e um cavalo, Daffodil, que meu pai montou até ficar com muita falta de ar.
Já estávamos no fim de setembro. Eu contava os dias, obsessivamente con- vencida de que, se medisse o tempo, ele não seria de fato perdido. Atravessa-mos um vento quente em direção à casa na Brownwood Drive onde eu pas-sara milhares de noites deitada na cama, olhando para um emaranhado de olmos que morriam lentamente da doença do olmo holandês, onde ouvira álbuns do Supertramp num porão com carpete laranja para áreas internas ou externas colocado sobre o concreto, onde me postara na frente de um espelho com um vestido de baile de formatura, minha mãe ajeitando as pétalas de raiom — e, ainda assim, uma casa em que eu quase não pensara, desde que partira. E lá estava ela: térrea, em estilo de rancho, revestida de tijolos amare-los que deviam ter sido colados por fora, um quadrado verde de grama viçosa enfiado embaixo do seu queixo como um guardanapo. Aquela casa era tão indistinguível de dezenas de milhares de outras em Rockford que me virei para Mary Cunningham e perguntei: — Tem certeza de que é essa?Ela pareceu intrigada, depois riu, sem dúvida lembrando-se de que minha visão estava pior que a dela no momento, que eu estava dopada de analgésicos.
E, no entanto, quando nos virávamos para seguir, tive o que julgo ser uma lembrança: aquela casa contra um céu do amanhecer e eu correndo em dire-ção a ela vindo da casa da minha melhor amiga, Ellen Metcalf, onde tinha passado a noite. A sensação de vê-la ali — a minha casa, com tudo o que eu conhecia dentro dela. A experiência dessa lembrança foi como levar um tapa, ou ser beijada, inesperadamente. Pisquei para me recuperar.
Na semana seguinte, fui de muletas até o Rock River, onde um parque e uma pista de corrida serpenteavam ao longo da margem leste. Olhei ávida para a pista, desejando visitar o roseiral e o lago dos patos mais para o norte, mas sabendo que não tinha forças. Em vez disso, usei um telefone público no esta-cionamento ao lado da ACM para acessar a minha secretária eletrônica. Todos os telefones da Sra. Cunningham eram de disco.
Já fazia sete semanas desde o acidente, e a mensagem que instruí minha irmã a deixar na secretária explicando a minha situação, apesar de não revelar que eu tinha saído do apartamento — temendo que ele fosse assaltado, o que teria realmente acabado comigo —, provocara uma enxurrada de recados de amigos preocupados que Grace andara recolhendo obedientemente. Mas havia alguns que ela ainda não pegara. Um de Oscar, meu agente, que gritava atra-vés de uma polifonia de telefones tocando que agora me parecia do outro mundo: “Só para ver como você está, amor. Ligue quando tiver recuperado o dom da palavra.” Ele tinha ligado todos os dias, disse minha irmã. Oscar me adorava, embora fizesse anos que eu não ganhava um dinheiro bom para a minha agência, Femme.
A segunda ligação era de uma pessoa chamada Anthony Halliday, que se iden- tificou como detetive particular. Grace já pegara duas mensagens dele. Como nunca tinha falado com um detetive particular antes, liguei por curiosidade.
— Escritório de Anthony Halliday. — Uma voz feminina trêmula, quase infantil. Não uma profissional, pensei. Alguém substituindo o titular. — Ele não está no momento. Quer deixar recado? Eu não estava divulgando o número de telefone de Mary Cunningham em parte porque ela era uma velhinha bondosa, não a minha secretária, e porque havia alguma coisa perversa e incompatível na ideia de Nova York e seus habitantes invadindo o mausoléu da casa dela.
— Prefiro ligar para ele — falei. — Qual é a melhor hora?Ela hesitou.
— Não tem como ele ligar para você?— Olhe — retruquei —, se ele quiser entrar em.
— Ele está, hã. no hospital — disse ela, apressada.
Ri — minha primeira risada de verdade desde o acidente. Fez minha gar- — Diga a ele que somos dois. — Dei uma gargalhada. — Que pena não es- tarmos no mesmo hospital. Podíamos simplesmente nos encontrar no corredor.
Ela riu, aflita.
— Acho que eu não devia ter falado isso, sobre o hospital.
— Estar hospitalizado não é vergonha nenhuma — assegurei-lhe com en- tusiasmo —, desde que não seja num hospital psiquiátrico.
Silêncio mortal. Anthony Halliday, um detetive particular com quem eu nunca falara, estava num hospital psiquiátrico.
— Talvez semana que vem — disse ela timidamente.
— Ligo semana que vem.
Mas, no momento em que iniciei minha vacilante viagem de volta para a casa de Mary Cunningham, senti a ideia escapar da mente como aquelas listas que a gente faz enquanto adormece.
Grace me visitou naquela noite, puxando uma cadeira entre as duas camas em que Mary Cunningham e eu estávamos refesteladas como sempre, assistindo a NYPD Blue. Quando um homem foi espancado num banheiro, ficando com o rosto todo ensanguentado, Grace tapou os olhos e me implorou para mudar de canal.
— Mude você — retruquei. — A inválida sou eu.
— Desculpe-me — disse ela, indo encabulada até a tevê, aparentemente uma das últimas do mundo controlada manualmente. — Não era eu que devia estar resmungando.
— Você está resmungando por nós duas — comentei.
— É que parece bizarro você vir a Rockford sem me avisar — disse ela, Ela tinha falado isso dez vezes, aparentemente convencida de que, se soubesse que eu estava a caminho, eu teria chegado sem incidentes. E por mais que não gostasse dessa linha de questionamento (ou de qualquer linha de questionamento, na verdade), eu a preferia mil vezes ao assunto que Grace não se atrevia a abordar: com que rosto eu ficaria quando aquilo tudo terminasse? E o que seria de mim? — Eu queria fazer uma surpresa — expliquei.
— Nossa, e você ainda não se lembra do que aconteceu! — Mary Cunnin- gham se admirou. — Foi um animal na estrada, querida, ou você estava com sono? Será que pode ter dormido na direção por um minuto? — Não me lembro. Não me lembro — respondi. Por alguma razão, tapei os ouvidos.
— A memória dela sempre foi horrível — disse Grace.
Era verdade — minha memória era horrível, e Rockford era o lugar de que eu menos me lembrava. No entanto, o tédio e o estado de impotência da mi-nha situação estavam me levando a recordar da maneira desconexa que al-guém, encerrado numa casa velha, acaba indo até o sótão e derrubando algu-mas caixas. Às vezes, eu me via impregnada de impressões infantis de Rockford: um mundo exuberante e sensual de gramados verdes pegajosos e tempestades violentas, montanhas de neve cintilante no inverno. No início da adolescência, eu fiz um trabalho escolar sobre os feitos industriais de Rockford, lendo na biblioteca pública a respeito de uma plataforma autoacoplável para enfardadei-ras; de uma máquina de tricotar que fazia meias sem costuras; da “junta uni-versal” lubrificada a óleo, cujo propósito já esqueci; da “lado a lado”, uma combinação de estante de livros e mesa; a respeito de tornos mecânicos, co-lheitadeiras e suas peças. Lembro-me de ler num estado de profunda ansiedade, aguardando o momento em que Rockford explodiria em triunfo, a inveja do mundo industrial. Eu sentia essa glória se aproximando com a invenção dos carros, pois onze companhias de Rockford os haviam desenhado, e uma, a Tarkington Motor Company, construíra um protótipo que fora recebido calo-rosamente numa exposição de automóveis em Chicago nos anos vinte. Mas não — os investidores deram para trás, o carro nunca fora produzido, e, com esse fracasso, minha animação começara a se transformar em algo mais pesado. Não haveria visibilidade. Rockford permaneceu uma cidade conhecida por suas brocas, transmissões, juntas, serras, vedações, protetores de porta regulá-veis, velas, gaxetas — “acessórios para carros”, como tais produtos são conheci-dos — e por suas ferramentas agrícolas. Em resumo, por coisas tolas e invisíveis que ninguém no mundo jamais conheceria e para as quais ninguém ligaria.
Após dois dias de leitura, fui trôpega da biblioteca para a casca vazia do “centro da cidade”, em frente à nossa casa do outro lado do rio, cujo comércio havia praticamente sido todo transferido para centros comerciais a leste do rio, perto da estrada interestadual. Minha mãe buzinou do estacionamento do ou-tro lado da rua. Mas fiquei parada por um minuto, segurando a minha bolsa de livros, deixando a pequenez e a pobreza daquele lugar esquecido se derrama-rem a minha volta. Rockford, eu agora via, era uma cidade de fracassados, um lugar que nunca chegara perto de ser famoso por coisa alguma, apesar de ter tentado repetidas vezes. Um lugar reverenciado entre mecânicos por sua junta universal não era um lugar onde eu podia permanecer. A ideia era clara para mim aos doze anos: minha primeira noção clara de mim mesma. Eu não era Rockford — era o seu oposto, o que quer que isso pudesse ser. Decidi isso enquanto estava parada em frente à biblioteca pública. Então, atravessei a rua e entrei no carro da minha mãe.
Nosso pai tinha uma empresa atacadista de suprimentos elétricos. Ele era um homem que podia chegar até a fiação escondida atrás das paredes, que trançava fios com os dedos e fazia as luzes acenderem. Quando criança, eu atribuía poderes mágicos ao seu trabalho e me enfeitava com colares que ele me fazia de pinos, juntas de borracha e fios coloridos. Mas depois da biblioteca comecei a imaginar uma perspectiva da qual a vida do meu pai — e da minha mãe também — era pequena, prudente e inútil, afetada muito profundamente por aquele lugar onde ambos passaram a vida. Cresci esperando ir embora. E Grace cresceu se apegando a mim, sabendo que eu iria e ela ficaria.
Agora ali estava eu, de novo em Rockford, brigando com minha irmã para decidir quem devia mudar o canal da tevê, a cabeça cheia de pinos e parafusos de titânio inventados ali, pelo que eu sabia. Achei graça nisso, com um humor negro, uma das pequenas ironias da vida.
— As meninas estão loucas para ver você — disse Grace, reacendendo a nossa discussão contínua sobre minhas sobrinhas. — Por favor, me deixe trazê-las.
— Elas pensam que querem me ver — falei.
— Charlote, esqueça isso — retrucou ela, e apertou minha mão. — Elas — Ainda não.
Não que eu não quisesse ver Allison e Pammy. Na verdade, eu estava an- siosa para cheirar os seus cabelos despenteados e sentir o encontrão delas do jeito que criança dá sem pensar. Mas para elas eu era a Glamourosa Tia Char-lotte, a modelo que às vezes elas encontravam sorrindo, mão no quadril, em catálogos que chegavam à sua porta sem serem solicitados (pois era a esse nível que eu tinha baixado) ou fazendo figuração num comercial de Tampax. Aque-la era eu anunciando desodorante no Coney Island Cyclone (“Agora isso. É estresse”); era eu de botas, empunhando uma vara de pesca e declamando os méritos do talco fungicida para os pés. Aquela morena com cara de duende esparramada em cima de um Buick como se tivesse caído de uma árvore? A de óculos, toda vermelha ao contar de novo o trauma de expelir gases durante uma reunião do conselho? Convencendo o filho sardento a comer granola enriquecida? Aquelas também eram eu. Aquilo estava bem aquém da existên-cia transcendente que um dia eu tinha imaginado. Mas para minhas jovens sobrinhas eu encarnava uma ascensão mítica.
Eu as deixaria acreditar em paz em mim, disse a mim mesma, sem a carga da minha atual desfiguração. Eu tinha vergonha de ser vista.
Uma tarde, fui a pé ao cemitério de Cedar Bluffs e estacionei o meu traseiro numa lápide que estava o mais perto que eu podia me lembrar do ponto onde eu costumava me sentar com Ellen Metcalf. Acendi um Merit, meu primeiro desde o acidente, desobedecendo ao aviso do Dr. Fabermann de que o fumo atrasava a recuperação dos ossos. Antes e depois do jantar, também, às vezes, eu e Ellen nos encostávamos naquelas lápides em meio às legiões de falecidos suecos, Olsens, Lofgrens, Larsens, Swensons como eu, e fumávamos Kools, que julgávamos ser uma cura para o calor do verão. Conversávamos sobre a perda da nossa virgindade — não a perdendo, porém, com toda a infelicidade que a palavra sugeria, mas cedendo-a numa explosão de êxtase que nos deixaria para sempre alteradas.
Tentei recordar o som da voz de Ellen. Não consegui, como se ela tivesse sido uma amiga imaginária, uma projeção inventada de mim mesma. Uma vez, tínhamos ido a pé da East High School até a farmácia ao lado do Piggly Wiggly, depois paramos diante da sessão de brinquedos de plástico. Só para descobrir, enquanto nos entreolhávamos com ar inquisitivo, que nenhuma de nós sabia o que estava fazendo ali; uma seguira a outra.
Após minha consulta seguinte ao médico, pedi a Grace para passar pela East High School. Um prédio bastante imponente, me parecia agora, grande e cor de mostarda, centenas de janelas de ângulos inclinados jogando com a luz do sol. Quando estava parada diante de seus largos degraus vazios, me bateu mais uma lembrança: ver Ellen Metcalf pela primeira vez em frente àquela escola, uma garota de pele cor de oliva e longos cabelos negros. Vendo-a ali, exótica, só, e querendo ser ela — o sentimento me saltou dos dedos para a garganta. Mais tarde, Ellen disse, a respeito de me ver naquele dia: “Deu para sentir que não era o seu lugar.” O maior dos elogios.
Seu pai tinha uma grande empresa de fertilizantes, e sua mãe era uma qua- se inválida, enclausurada num quarto escuro, consumida por alguma doença cuja natureza exata ninguém parecia saber ao certo. Eles moravam numa casa ampla a poucas quadras da minha. Ellen existia num estado de altivez solitária, como o último membro sobrevivente de uma família real. Seu irmão, Moose, partira no ano anterior para a Universidade de Michigan. Eu sabia a respeito de Moose. Ele era um daqueles garotos do ensino médio cujos feitos atléticos e românticos inspiram o equivalente adolescente da poesia épica, recitada com desejo em sua ausência. Eu estive com ele uma vez, rápida e emocionantemen-te numa tarde de verão, enquanto treinava meu swing de golfe no gramado da nossa casa e quebrei um sprinkler, lançando um gêiser de água para dentro de um Mustang conversível que estava passando. O motorista saltou, sacudindo água do cabelo bem comprido: um garoto mais velho, bronzeado, vestido com uma camiseta branca impecável, andando pela grama como uma pessoa que nunca tivesse se apressado na vida. Enquanto eu gaguejava minhas desculpas, tentando estancar o jato espumante de água com o pé, ele examinou nosso quintal e disse: — Onde é que fica a torneira? Atrás daquela cerca? Feche que vou dar uma Quando voltei dessa missão, ele havia retirado a cabeça do sprinkler e sacu- dia suas peças enferrujadas na mão como dados. Sua concentração me permi-tiu estudá-lo; um garoto sortudo e confiante, cuja atração era exacerbada, de certa forma, pelo contorno neandertal da sua cabeça. Vinte minutos depois, ele havia consertado o sprinkler, voltado para o carro e partido com um aceno, e foi só então que uma garota mais velha da casa em frente correu para me con-tar, sem fôlego, na presença de quem eu estivera.
Mas Moose se fora. Ellen estava só, abandonada num lugar que parecia tão falido para ela quanto para mim. Tudo o que era bom havia desaparecido daque-la cidade nojenta, aquela terra de colhedores e rolamentos, e não havia outro remédio senão nos apossar das poucas emoções que restavam. Falávamos sobre a nossa luxúria — onde exatamente ela residia dentro de nós. Em nossas barri-gas, pensávamos, embora Ellen dissesse que a sentia, também, no fundo da boca.
Em outubro, o Dr. Pine retirou os últimos vestígios de gesso do meu corpo. Enquanto Mary Cunnigham passava o ancinho no quintal, eu ficava atrás dela com um tubo de veneno verde cujo bico enfiava no olho de cada erva daninha que eu via e bombeava. Rockford tinha aderido à mania de sacos de folhas com cara de abóbora de Halloween. Havia pelo menos um saco laran-ja sorridente em cada gramado, abarrotado de folhas. Seguindo as ervas dani-nhas, tentei me lembrar de cada uma das minhas presas sexuais daquele se- gundo ano do ensino médio com Ellen. Jeff Heinz: um jogador de futebol tímido e escultural, cuja pura graça de movimentos o distinguia do restante dos jogadores no campo. Eu e Jeff fazíamos química juntos, e consegui me insinuar no papel de sua parceira de laboratório, ficando pertinho dele, roçan-do o seu pulso enquanto nos intrigávamos diante de tubos de ensaio cheios de líquido colorido. Nada. Enquanto isso, Ellen tinha um namorado, Michael Ippen, para quem ela esperava dar em pouco tempo. Então, renunciei a Jeff Heinz, que foi para a Brown University (um passo inusitado para um garoto de Rockford), de onde voltou a eletrizante notícia, um ou dois anos depois, de que ele era bicha. Eu adoraria ter rido disso com Ellen, mas àquela altura já não nos falávamos.
Benji Gustafsen: louro, meigo, músculos definidos na barriga, cuja inteli- gência, parecia, se resumia por completo numa habilidade para restaurar pe-quenos utensílios antigos: abridores de lata, forninhos, aspiradores de pó. Isso era uma bênção para amigos e vizinhos de Benji; não tanto para qualquer pessoa que tentasse manter uma conversa com ele. Mas o meu objetivo não era conversa, tampouco, e perdi a minha virgindade com Benji em sua paupérrima oficina de porão só dois dias depois de Ellen ter perdido a dela com Michael Ippen na cama mole do irmão mais velho dele. Tiramos a neve das nossas respectivas lápides e nos sentamos ali à noitinha, em parcas que apertávamos contra o corpo, olhando para o oeste através das luzes da via expressa que serpeava ao longo do Rock River.
— A cama tinha um cobertor que pinicava — comentou Ellen.
— Havia toneladas de embalagens do McDonald’s no chão — disse eu. — — Doeu?— Horrores. Além do mais, sangrou.
— Com aquele ketchup todo por ali — retrucou ela —, provavelmente ele Passamos o nosso último Kool para lá e para cá. Ellen deslizou da lápide e — Isso não congela a sua cabeça? — perguntei.
— Congela — disse ela —, mas as estrelas.
Deitei-me ao seu lado. Ela estava certa, as estrelas. Depois de dar para Ben- ji, eu tinha ficado com uma sensação terrível — quem era aquele cara, se esti-cando como um cachorro até estalar a coluna? Mas aí, eu pensei em Ellen, em contar isso a ela, formular uma estratégia, e a sensação se transformou numa espécie de doçura.
Marcus Sealander: um motoqueiro tatuado cuja jaqueta de couro preta amea- çadora escondia nada mais que uma pança. Transamos em pé. Marcus tinha um hábito desagradável de bater com meus ombros na parede como se pensar em quebrar a minha coluna o excitasse, então não teve segunda chance. Enquanto isso, Ellen deu duas vezes para Luis Guasto, um garoto estranho que tinha colado centenas de latas de cerveja nas paredes da sala de jogos dos pais com uma pisto-la de cola quente. Eles transaram lá embaixo, em meio às latas, e na primeira vez Ellen achou que talvez, mal e mal, sentisse alguma coisa, mas aí Louis saiu de cima dela e logo depois estava no banheiro mijando ruidosamente, e pronto. A segunda vez foi até pior — finalizada em exatos quatro minutos. Tom Ashlock. Lenny Bergstrom. Arthur Blixt. Stephen Finn. Na primave- ra, éramos putas, sereias, igualmente alarmantes para meninas e meninos en-quanto procurávamos em vão alguém para nos satisfazer. Quando Moose foi passar o Natal em casa, Ellen me abandonou pela órbita sagrada dele. Um desapontamento brutal, uma vez que eu esperava ser incluída. Por três solitárias semanas, quase não a vi. A partida de Moose deixou-a desanimada, mas logo a alquimia da nossa união voltava a funcionar, planejando o nosso resgate da banalidade esmagadora que nos rodeava como aquelas salas cheias de água que encolhiam, das quais os heróis da tevê tinham de escapar. As ruas, o céu, a lua horrível. O que havia de errado com esses garotos? Garotos. Rolamos para o lado, nos olhando em meio às lápides. A neve tinha derretido, expondo um papel machê de folhas empapadas do ano anterior. Está-vamos quase tendo uma revelação: o problema eram os garotos — muito jovens, muito inexperientes para nos fazer sentir o que desejávamos e merecíamos, ao passo que os homens, com seus anos de prática. Os homens saberiam exata-mente o que fazer! E descobrir homens não seria tão difícil. O Sr. Polhill, o instrutor da autoescola de Ellen, vivia se debruçando por cima da mesa dela e cheirando o seu cabelo, e quanto a mim. quão mais velho ele tinha que ser? — Muito — disse Ellen. — Na casa dos trinta.
Havia um homem que eu flagara me olhando à beira da piscina do clube de campo no verão anterior. Um estrangeiro — francês, achei, que usava uma sunguinha apertada como as que os garotos do nosso time usavam. Eu o achei bizarro na época, mas agora revia a minha opinião: ele era francês, era um homem, era perfeito.
O Sr. Polhill galantemente ofereceu o próprio carro quando Ellen lhe pediu aulas extras de direção depois da escola, e então sugeriu um pequeno desvio. Isso foi tudo o que ela quis me contar. Havia um vazio nela que eu nunca tinha visto antes. Esperei no cemitério, mas ela não foi, e, quando fui atrás dela na escola, se recusou a dar detalhes.
Enquanto isso, por meio de uma amiga de minha mãe que conhecia a Sra. Lafant, a garota de Rockford que era casada com o francês, consegui arranjar um trabalho de baby-sitter numa noite de sexta-feira na casa dele, onde dois fedelhos deixaram cair sorvete na frente do vestido justo e decotado que eu estava usando para chamar a atenção do Sr. Lafant. Depois, quando ele me levou de carro em casa, me aproximei dele no banco da frente. Ele ficou imó-vel, como que incrédulo.
— Você é uma moça muito encantadora — suspirou com cuidado, naque- Quando cheguei mais perto, ele afagou o meu cabelo e fechei os olhos, só os abrindo quando percebi que o Sr. Lafant começara a dirigir de um jeito bastante agressivo. Ele deu uma freada brusca em algum lugar perto da Spring Creek Road, desligou o carro e apagou os faróis. Minha vista custou um pou-co a se adaptar, e quando isso aconteceu, distingui o pênis ereto dele saindo das calças como uma toupeira emergindo de um túnel. Suas mãos, que momentos antes afagavam delicadamente o meu cabelo, agora guiavam a minha cabeça da forma mais assertiva em direção àquilo. Fiquei assustada. Sua pressa visível piorava a situação. Quando me contorci resistindo, ele segurou a minha cabeça por trás e me empurrou para a sua virilha enquanto também (reparei) olhava para o relógio, sem dúvida calculando quanto tempo ainda teria antes que sua mulher começasse a se perguntar onde ele estava. Uma onda de repulsa me percorreu. — Não! — gritei. — Não, não! E aí o meu chefe começou a se apavorar. — Cale a boca — implorou, tirando o pênis inquisidor do alcance dos Levou-me em casa num silêncio urgente, um músculo zangado saltando no rosto. Pulei fora do carro e ele se afastou com estrondo sem uma palavra, os pneus cantando na nossa rua sossegada.
Eu teria corrido direto para a casa de Ellen, mas minha mãe ouviu o carro e foi de mansinho de chinelo e roupão para o gramado molhado de sereno.
— Bom, não foi muito simpático — comentou. — Ele podia ter esperado Na manhã seguinte, Ellen me encontrou na porta dos fundos do seu casa- rão vazio e me conduziu escada acima com o mesmo olhar indiferente da se-mana inteira. I Love Lucy passava na sala de tevê.
— Então, você deu? — perguntou, sem tirar os olhos do aparelho.
— Ele não quis — respondi. — Queria ser chupado.
Ellen virou-se para mim com interesse.
— Não consegui — confessei. — Era muito nojento. — Depois perguntei, instintivamente: — O Sr. Polhill. quis? Ellen começou a chorar. Eu nunca a tinha visto chorar antes, e fiquei ron- dando ao lado dela, na iminência de abraçá-la como fazia com Grace quando ela chorava, mas hesitante. Ellen não era Grace. — Você fez? — sussurrei.
— Tentei — disse ela —, mas três segundos depois, ele. Você sabe, ele.
— Não! Não!— Na minha boca — soluçou ela.
— Ai, meu Deus!— E aí, eu vomitei. Nele todo e na cama.
Fiquei quieta, paralisada pelo meu horror diante da cena que ela contava, e ao mesmo tempo achando certa graça que parecia inerente à situação. Minha boca, por si só, se contraiu num sorriso, e aí o choro de Ellen se transformou em riso, histeria completa, lágrimas ainda escorrendo de seus olhos. Àquela altura, eu estava rindo, acompanhando Ellen numa gargalhada doída até co-meçar, também, a chorar.
— Ele deve ter morrido — solucei.
— Correu para o banheiro e fechou a porta — disse ela, e aí nos encolhe- mos, as duas (como se revelou) molhando as calças sem poder fazer nada.
Mais tarde, tendo tomado um banho e nos trocado, metido os nossos jeans e nossa roupa de baixo na máquina de lavar de Ellen, pusemos três Old Styles numa sacola e as levamos para o cemitério, junto com um maço de Kools.
— Esqueça os homens — disse Ellen. — São pervertidos.
— Os bons não transariam com a gente — concordei. — Só querem Bebericamos as cervejas geladas. Eu estava com muito calor, já não precisá- vamos das nossas jaquetas. Estávamos frescas e limpas, no entanto, de algum lugar dentro de nós — embaixo de nós, quase parecia, lá do meio dos suecos mortos —, vinha um peso que era palpável. O peso do nosso tédio, da nossa impaciência.
— Eu tenho a resposta — garantiu Ellen, mas sem nada da alegria que acompanhara nossas inspirações anteriores.
— O quê?— Moose.
Moose. Que naquele mês, ela me informou, voltaria da Universidade de Michigan para as férias de verão com três amigos a reboque. Que daria festas e esquiaria na água com esses amigos por algumas semanas, lubrificando a vasta máquina da sua vida social antes de iniciar um trabalho de verão na fá-brica do pai. Cujos amigos sem dúvida seriam os melhores espécimes que a Universidade de Michigan, ou qualquer universidade, tinha a oferecer. Não homens, não garotos. Experientes, mas não pervertidos.
No entanto, apesar de todo o encanto épico do irmão de Ellen e daqueles dentro de seu alcance santificado, a própria ideia de mais uma façanha sexual me exauria. Eu temia perder Ellen de novo após o regresso de Moose, como perdera no Natal.
No primeiro sábado dele na cidade, ficamos olhando pelo alambrado do clube para o rio lá embaixo, onde Moose e seus amigos — Marco, Amos, Todd — deslizavam aos arrancos sobre a água marrom, anunciados pelo ronco da lancha de Moose. Mesmo daquela distância, a visão do irmão de Ellen era arrebatadora: um cara forte e atlético de calção de banho verde-néon, o me-lhor esquiador entre os quatro, de longe. Mas esquiou menos que todos, prefe-rindo instigar os outros do timão da lancha.
— Qual você quer? — perguntou Ellen.
— Incluindo Moose?Ela me olhou de um jeito estranho, depois balançou a cabeça num gesto de — Marco — falei, abatida.
— Fico com o Todd — disse Ellen, o que me desconcertou. Ele era o mais pálido dos dois, magro de um jeito que lembrava o meu pai.
O destino de Moose naquela noite era uma festa numa das amplas casas da National Avenue, logo ao norte do centro. Nosso plano era aparecer lá, transar em algum lugar da casa com nossos respectivos eleitos e depois nos encontrar de novo no clube, à beira da piscina.
A festa estava decepcionantemente chata. Tom Petty forçando o aparelho de som do pai de alguém, um monte de sujeitos bêbados e barulhentos mais velhos que nossos colegas de classe, mas afora isso idênticos. Afinal, observei Moose novamente de perto — na cozinha, onde ele e outro cara faziam um jogo com esfregões de espuma, disputando a posse de uma lata de Tender Vittles no piso de linóleo grudento. Moose era uma presença imponente, ombros largos movendo--se rapidamente dentro da camiseta branca como teclas num piano enquanto ele arrancava a ração de gato do adversário com uma sofisticada manobra com o esfregão, braços bronzeados e macios, a aparência um amálgama vencedor de beleza, rigidez e um leve embaraço. E mais uma coisa: uma consciência por par-te de Moose e das demais pessoas, um monte de admiradores aglomerados na sala para ter uma ideia remota da loucura dele, de que ele era especial. Famoso.
Ao nos ver — ver Ellen —, Moose abandonou o jogo.
— Mana — disse ele largando o esfregão e passando um braço em volta Abraçada assim, Ellen parecia infantil, serena — imperturbável de um jeito que eu não poderia ter imaginado. O grupo se acercava dela com um sorriso. Observei tudo fascinada e enciumada.
Mais tarde, num pátio banhado por lâmpadas infestadas de insetos, eu e Ellen nos atiramos nos amigos de Moose com um ímpeto que beirou o descuido. Moose lançava olhares ácidos na minha direção, mas, quando a festa esquentou, ele perdeu o nosso rastro. No fim, eu e Marco subimos furtivamente uma estrei-ta escadinha para um quarto de hóspedes do terceiro andar que cheirava a nafta-lina. Ele tirou minhas roupas e já estava se debruçando sobre mim como um guindaste transportando um carro velho para cima de uma pilha quando recuei.
— Não — falei. — Para, espera! — Estava aflita com a lembrança do Sr. Lafant. Era muito cedo, eu não conhecia aquele cara. Eu tinha esquecido o que devia fazer com ele, e por quê. Marco, perplexo com esse ataque de recato depois do meu comportamento devasso lá embaixo, foi mijar.
Fugi do quarto e me mandei da casa, correndo pela beira do rio em direção ao clube, já reanimada pela ideia de ver Ellen e trocar as nossas desventuras, como sempre. Só que, pensei, ainda correndo, e se a história dela não fosse uma desventura? E se, finalmente, depois de tanto tempo, ela e Todd tivessem en-contrado o que procuravam? A ideia me deixou enjoada.
O portão de ferro do clube estava trancado, uma possibilidade que nós não havíamos previsto. Fiquei do lado de fora, me perguntando se deveria escalá-lo. Finalmente, subi pela cerca e me joguei dentro do clube, no maior silêncio sob o luar claro e as nuvens rasgadas. A relva quente do campo de golfe surgiu embaixo dos meus pés. Desci correndo os degraus de pedra para a piscina, cujo fundo turquesa captava o luar, e vi algo se mexer dentro da água, era Ellen. Senti tama-nho choque de felicidade que gritei o nome dela, e ela fez sinal para eu falar baixo, rindo, e vi suas roupas à beira da piscina e tirei as minhas e mergulhei no silêncio molhado, pesado. Senti a água mexer quando Ellen passou nadando, seus longos cabelos ondulando na minha pele. Irrompemos de dentro d’água, rindo.
— Então, o que houve? — perguntei baixinho.
— Com o quê?Olhei para ela.
— Todd!— Ah, ele não conseguiu — disse ela, com uma indiferença que me en- Mas estávamos rindo. Não havia sentimento de fracasso. Só essa vertigem, como se tivéssemos nos libertado — finalmente, de alguma forma — de um destino oneroso. Nadamos para o lado raso e olhamos para o céu. O ar e a água estavam da mesma temperatura, duas versões diferentes da mesma subs-tância. Era estranho e bom estarmos nuas na piscina onde geralmente precisá-vamos usar touca de banho. Nuvens passavam pela lua, leitosas, misteriosas, e ouvi um barco no rio lá embaixo e pensei: estou feliz. Isto é felicidade — por que eu estava procurando qualquer outra coisa? Ellen boiava de costas, a água rodeando seus seios, e ninguém jamais me parecera mais lindo. Tentei alcançá--la. Era como se ela tivesse sabido que eu tentaria, como se ela também tivesse tentado me alcançar. Ficamos de pé dentro d’água e nos beijamos. Cada sen-sação de desejo que eu já tinha conhecido agora se acumulava dentro de mim e lutava, exigindo liberação. Toquei-a embaixo d’água. Ela parecia familiar e estranha — outra pessoa, mas como eu. Ellen se encolheu e fechou os olhos. Pela primeira vez, eu tinha alguma ideia do que fazer. Ela se agarrou a mim com força, depois desabou, tremendo, os braços em volta do meu pescoço. Quando riu, ouvi o bater de queixo. Fomos para os degraus da piscina e nos sentamos, nossos corpos submersos, só nossas cabeças e nossos pescoços acima da água, e peguei a mão dela e a botei em mim. Ela estava hesitante, com medo, mas mantive a minha mão na dela até meu coração estalar e minha cabeça bater no concreto atrás de mim. Ficamos ali deitadas, minha cabeça latejando, um galo se formando no meu crânio que ficaria doendo uma sema- na, e quando a água nos fez tiritar, saímos da piscina e nos secamos com as nossas roupas e as estendemos na grama e nos deitamos em cima delas e reco-meçamos, mais devagar agora. Mesmo assim a intensidade era penosa — está-vamos matando uma à outra, pensei. Estávamos matando alguma coisa. De-pois, ficamos deitadas cochilando, e finalmente Ellen disse: — Podíamos ensinar umas coisinhas a esses babacas. E rimos e nos vestimos e voltamos a pé para a casa de Ellen, conversando despreocupadamente, como se nada tivesse mudado. Éramos melhores amigas.
Dormimos nuas na cama de solteira de Ellen, coladas uma à outra com o cabelo dela em toda parte, e mais uma vez tive aquela sensação, de quando a toquei pela primeira vez, de que ela era menos uma pessoa distinta do que uma variante de mim mesma — de que, juntas, formávamos uma coisa só. Acordei ao raiar do dia e tive o impulso de ir embora, com aquilo tudo ainda tão bom. Isso era estranho porque era domingo, e normalmente teríamos feito panquecas suecas e assistido a desenhos animados, provavelmente passado o dia inteiro juntas. Mas deixei Ellen dormindo ali e fui para casa a pé no sol de maio, e só quando me aproximei da minha casa, a modesta construção térrea amarela que o sol claro da manhã deixava quase branca, o que tinha acontecido com Ellen começou a parecer bem estranho. Eu quase não conseguia acreditar. Mas quan-do me lembrei daquela sensação, da sensação física, senti um frio na barriga, e tudo o que eu queria era vê-la de novo, tê-la de novo. Será que sou lésbica?, perguntei a mim mesma, incrédula. Nenhuma outra garota jamais me atraíra.
Esperei até aquela noite para lhe telefonar. Moose atendeu (friamente, sem dúvida tendo sido informado da minha palhaçada com Marco) e passou para Ellen. Ouvi uma cautela em sua voz que de imediato provocou uma cautela igual em mim, e nossa conversa teve um sentimento estranho e forçado que era completamente diferente de nós. Isso nunca passou. Daí em diante, ver Ellen era como esbarrar em um dos caras com quem eu tinha transado. Ela me deixava inibida, consciente da passagem dos minutos e da necessidade de preenchê-los com alguma coisa. Nas pausas, eu me perguntava, será que ela está pensando naquilo? Será que quer fazer de novo? Mas eu não queria, porque agora Ellen não me parecia diferente de um garoto.
Foi um verão horrível. Eu não tinha outras amigas. Só vi Ellen uma vez, — Espera — arfei, puxando Grace para o escuro enquanto Moose e seus amigos subiam da sala de cinema para o saguão acarpetado.
Os garotos estavam se provocando, se descabelando, e Moose se abaixou, ergueu Ellen e a carregou no ombro — com muita facilidade, como se ela fosse um gato, e os tamancos dela caíram, mas Moose não queria colocá-la no chão, saiu correndo portas de vidro afora com ela para o estacionamento, onde ouvi o crescendo das gargalhadas dela. Alguém pegou os tamancos e os levou para ela. Fiquei olhando, incrédula. Ser mimada, protegida assim — como devia ser? Estar no centro absoluto, adorada pelo garoto que todo mundo ama-va, sem fazer força. O que poderia competir com isso? Naquele outono, vi Ellen voltando a pé da escola para casa na minha fren- te. Estava sozinha, a tristeza envolvendo-a agora que Moose partira. Apertei o passo e alcancei-a.
— Eu me sinto muito estranha agora perto de você — falei.
— Eu também — admitiu ela.
— A gente tem que esquecer aquilo. Tem que voltar ao jeito que era antes.
— Tem, sim! — concordou ela.
Então, silêncio. Eu não conseguia pensar em mais nada para falar, e força- mos comentários secos e vazios o tempo todo enquanto eu contava os minutos até minha casa. Quando finalmente ela apareceu, fingi que minha mãe me esperava e saí correndo, deixando Ellen sozinha.
Eu tinha pensado que seria difícil fazer novas amizades, mas o fato é que nossa desunião nos neutralizava na mesma medida em que a nossa harmonia nos dera a sensação de força. Acabamos nos acomodando com namorados, fomos a bailes de formatura e até assinamos os anuários uma da outra — Boa sorte com tudo! —, e, salvo no sentido mais abstrato, esqueci aquela noite.
Fiz, sim, uma última visita à casa de Ellen. Dessa vez, com Moose, que se formara pela Michigan e voltara a Rockford para trabalhar com o pai. Dei em cima dele no meu último ano do ensino médio num campeonato estadual de hóquei, onde ele assistia aos adolescentes correrem no gelo. Àquela altura, a aura de fama de Moose havia minguado. Até os irmãos mais novos dos garotos que o haviam reverenciado não estavam mais lá, e a East High, onde ele rei-nara no passado, já não sabia da sua existência. Continuava morando na casa, e subi atrás dele a familiar escada escura, passando depois pelo quarto principal onde sua mãe inválida ficava, pelo quarto vazio de Ellen (ela era um ano mais velha que eu e já tinha se mudado para a faculdade) até o seu próprio refúgio no sótão: pôsteres de esporte desbotados soltando-se das paredes, troféus em-poeirados enfileirados nas prateleiras. Havia uma seriedade em Moose de que eu não me lembrava. Quando caímos na cama dele, vi uma série de cordas e polias ligadas a uma caixa presa no teto. Perguntei o que eram.
— Nada — disse ele. — Uma coisa velha para a qual já passei da idade.
Quando a transa terminou, ele apagou. Fiquei olhando para ele, os ombros volumosos, a sombra levemente arroxeada de suas pálpebras. Aquele acúmulo de tantos anos de inveja e mistério, idolatria e mito agora de bruços, ressonan-do no travesseiro.
Ele abriu os olhos.
— Que foi? — perguntou, grogue.
— Você — falei.
Ele pareceu intrigado e se levantou, apoiando-se num cotovelo.
— Só. Moose — disse eu, balançando a cabeça. — Moose. Moose Met- Ele sorriu, sem jeito. Sabia exatamente o que eu queria dizer. O vento en- chia o quarto entrando pela janelinha.
— Na verdade, meu nome é Edmund — retrucou ele. Eu não era uma pessoa nostálgica. Não guardava cartões de Natal, raramente tirava fotos, em geral ficava indiferente aos instantâneos que as pessoas me mandavam. Até o acidente, eu sempre achara que minha memória era ruim, mas na verdade eu tinha jogado o passado fora, uma quantidade de aconteci-mentos descartados — para poder avançar, livre, para o futuro. Agora, enquan-to eu ia mancando entre as árvores altas e nuas até a casa de Ellen Metcalf, não era com a intenção de me perder em recordações lacrimosas da minha velha amiga, mas para ver a casa. Para saber no que a construção, e se possível Ellen, se transformara.
A mansão Metcalf tinha um anárquico estilo Tudor que sempre foi popular entre os ricos do Meio-Oeste. O gramado ainda me impressionava, vasto e vi-çoso apesar do verão escaldante por que tínhamos acabado de passar. Na relva havia diversos itens infantis: um morcego, um grande canhão de plástico, uma bicicletinha laranja fluorescente. A que faixa etária eles correspondiam, eu não tinha ideia. Toquei meu rosto, cheio do pancake grosso de aroma floral de Mary Cunningham. Eu continuava muito marcada. Em vez de desaparecerem, a im-pressão que eu tinha era de que meus hematomas simplesmente mudavam de cor, como fogos de artifício que não chegam ao fim. Eu me sentia sombriamen-te chamativa. Uma visitante sombria, uma starlet incógnita arrasada pelas drogas.
O jardim atrás da casa fora reformado. Havia canteiros em forma de grãos de feijão floridos com begônias cor de vinho. Fiquei parada no pátio de pedra e escutei o silêncio. Fui para a porta de tela que levava à cozinha — a porta que eu e Ellen sempre usávamos — e bati com delicadeza. Toquei a campainha. Quando ficou claro que não havia ninguém em casa, abri a porta e entrei.
A diferença me chocou. Eu me lembrava da cozinha como um cômodo escuro de paredes esverdeadas e janelas altas que deixavam a gente com a sen-sação de estar lutando para ver o céu do fundo de um poço. Agora as janelas eram largas e iam até embaixo, e o espaço fora aberto, desobstruído, e se via luz e céu e gramado verde salpicado de montes de folhas varridas. Muito Califór-nia, pensei, batendo os calcanhares nas lajotas cor de pizza do piso, com um sortimento incrível de panelas de cobre penduradas em cima do fogão.
E se alguém voltar para casa?, perguntei a mim mesma, subindo a escada da frente após uma olhada na sala de estar, onde a arte moderna tinha se apropriado das paredes. Mas eu não estava com medo. Sentia-me escudada — protegida, de alguma forma, por meus óculos escuros e minha máscara de maquiagem, o len-ço de seda na cabeça enfiado na gola da capa de chuva para esconder os hema-tomas no pescoço. Esta não sou eu, pensei, dobrando a escada e chegando ao hall superior, cujos pisos novos e paredes tinindo apagavam todos os vestígios da antiga melancolia. Como poderiam me pegar, se eu não era parecida com nin-guém? Como modelo, claro, eu carregava meu rosto como uma placa, mostran-do-o mais ou menos um palmo na minha frente — não por orgulho ou vaidade, Deus sabia. Esses sentimentos tinham sido apagados havia muito tempo, ou, de qualquer maneira, desligados da minha aparência física. Não, por puro aspecto prático: aqui está o que sou. Cartão de visita, aperto de mão, précis, chame do que quiser. Era o que eu tinha a oferecer ao mundo onde eu passara a minha vida.
Eu me encaminhava para o quarto principal, um quarto que eu só entrevia quando Ellen entrava ou saía, uma espiadinha disfarçada, uma lufada de ar perfumado, a voz baixinha e queixosa da sua mãe. Agora a porta estava aberta. Entrei. O quarto era imenso e vazio, réstias de sol passando inclinadas pelas persianas de madeira que pareciam feitas por encomenda. Havia grandes fi-gueiras e uma cama de aspecto moderno com quatro colunas compridas e delicadas. As paredes eram amarelo-esbranquiçadas. Num luxuoso quarto de vestir contíguo, farejei um dos perfumes Chanel, mas meu nariz entupido não conseguiu distinguir qual. Espelhos compridos, paredes cobertas de fotografias emolduradas. Cheguei mais perto para olhar — eu ainda não estava autorizada a usar as minhas lentes de contato —, curiosa a respeito da família que morava ali agora. Instantaneamente reconheci Ellen, muitos anos mais velha, mas ain-da bela, os ossos ainda mais fortes em seu rosto. Ela estava de pé numa praia com um homem ao lado, seu marido, presumia-se, que parecia dez anos mais velho e tinha a pele bronzeada e os dentes brancos de um alemão.
Ellen Metcalf. Eu estava no quarto de vestir de Ellen Metcalf.
Esforçando-me para focalizar meus olhos cansados, estudei outras fotos: Ellen recostada com o marido em algum lugar estranho; a cara amassada de um recém-nascido; umas fotos dos pais dela quando jovens, produzidas como os fotogramas de Hollywood; uma montagem de duas crianças, a garota mais velha que — coitadinha — não se parecia em nada com a mãe. Eu me pergun-tei se ela havia sido adotada. Ellen e aquela filha de trajes de banho iguais, deitadas à beira da piscina do clube. Enquanto eu pesquisava a narrativa espiral da vida de Ellen, comecei, pela primeira vez, a ficar aflita com a ideia de que ela voltasse para casa e me encontrasse ali. Não era a minha invasão que me preocupava. Era mais uma noção básica de que eu não poderia ser vista assim.
Decidi ir embora. Mas, nem bem eu tinha saído do quarto de vestir de Ellen, ouvi passos no corredor em frente. Apavorada, botei depressa os óculos escuros nos meus olhos deformados, voltei correndo para o quarto de vestir e me aga-chei dentro de um armário, fechando delicadamente a porta às minhas costas, arfando numa escuridão cheia de vestidos delicados e perfumados com mais daquele Chanel misterioso, até me ocorrer que a humilhação de ser apanhada dentro de um armário sem dúvida seria maior do que a de simplesmente estar parada num quarto de vestir, e abri a porta do armário bem na hora em que uma garota de uns treze anos, com fones de ouvido, entrou vindo do quarto.
Ela se sobressaltou, depois me olhou boquiaberta, espantada e culpada, como se fosse ela quem tivesse sido apanhada. Era a garota das fotos, uma me-nina de aspecto tristemente comum com um cabelo ralo e sem graça e óculos enormes. Puxou os fones de ouvido.
— Quem é você? — perguntou.
— Sou uma velha amiga da sua mãe — respondi da forma mais displicente que consegui. — Estava passando pela cidade e pensei em dar um pulinho aqui. Mas acho que ela não está em casa.
Esse frágil pretexto pareceu, estranhamente, satisfazê-la. Vi quão diferente da mãe ela era. Ellen teria franzido o cenho, toda desconfiada. Mas aquela era uma garota aberta, curiosa. Graças a Deus.
— Ela vai demorar um pouquinho — disse ela.
— Droga — exclamei, e então, porque parecia muito natural: — Onde ela está?— Em Chicago, no hospital.
— Nada de errado, espero.
Minha ignorância visivelmente a surpreendeu.
— Ricky teve leucemia. Mas agora está em remissão.
— Ah, que bom — falei. — Que maravilha. A casa está linda. Não a vejo — Vou lhe mostrar o meu quarto, se quiser.
Acompanhei-a pelo corredor. Ela tinha um passo leve, saltitante. Seu quar- to era o antigo de Ellen, agora pintado de azul e um pouco escuro. Ela era uma daquelas garotas que fecham as cortinas e se enfurnam na cama com um livro (não o tipo que eu conhecia bem). De fato, do lado, e até em cima da cama, havia livros empilhados. Os lençóis estavam remexidos, como se ela estivesse lendo debaixo das cobertas. Mas o lugar até onde ela me conduziu por orgulho ou hábito foi um gran- de aquário de peixes retangular. A água borbulhava alegremente. Havia uma cadeira colocada ao lado do aquário, como se a garota passasse um tempo ali, olhando os peixes, que eram lindos, tive que confessar, embora não fosse mui-to chegada a peixes. Os dois menores eram de um azul fosforescente, como plumas de pavão.
— Esses são donzelas — disse ela ao ver que eu tinha reparado. — Donze- — O que é isso? — achei-me na obrigação de perguntar, apontando para um peixe com ferrões pontiagudos curvados em volta da cauda como uma vírgula.
— Um anjo da chama — informou ela, depois acrescentou com orgulho: — Este é um aquário de água salgada.
Não tendo ideia da diferença que isso fazia, fiquei quieta.
A garota estava do outro lado do aquário, de frente para mim, me encaran- do através da água sendo filtrada.
— Por que você usa óculos escuros dentro de casa? — perguntou.
— Sofri um acidente — expliquei. — Um acidente de carro.
— Achei que tivesse acontecido alguma coisa — retrucou ela. — A sua cara está meio estranha. A luz fere seus olhos, é por isso que usa os óculos? — Não — respondi. — Eles estão simplesmente horríveis.
— Posso ver?— Você não vai querer — falei. — Sério.
— Quero, sim.
Ela queria. Queria ver meus olhos, aquela garota, e deu a volta no aquário com este intuito, magra, esguia, a cabeça mais ou menos na altura do meu peito. Eu tinha me enganado a respeito de sua idade: era mais que treze anos. Ela parecia quase adulta.
— Pode acreditar — disse. — Eu aguento.
Tirei os óculos. O quarto não estava nem de longe tão escuro quanto eu pensara. A garota olhou calmamente nos meus olhos: o olhar de alguém que já viu o seu quinhão de dor, e sabe que aspecto tem.
— Como você vai ficar depois que isso sarar? — quis saber.
— Como eu era antes, mais ou menos. Esses médicos, você sabe, são fantásticos.
Ela assentiu com a cabeça. Tive a sensação de que não acreditava em mim.
— Qual é seu nome? — perguntei.
— Charlotte — respondeu ela.
Pensei a princípio que a tivesse ouvido mal. Não perguntei de novo — limi- tei-me a deixar a surpresa ricochetear através de mim uma vez, depois se dissipar.
— Não brinca! — exclamei. — O meu também. Imediatamente percebi meu erro. Ela contaria a Ellen, e Ellen saberia o que — Que incrível! — falou. — Não conheço outras Charlottes. Só uma — Charlotte é um nome melhor.
— Também acho — concordou ela. — É sofisticado.
Houve uma pausa. Para distraí-la, perguntei:— E o seu tio? As pessoas ainda o chamam de Moose?A garota sorriu, o sangue lhe subindo às bochechas. O mesmo velho Moose, — Você conheceu meu tio? — indagou ela, empolgada. — Antes?— Um pouquinho — respondi, evasivamente. — Antes de quê?— De tudo o que aconteceu — falou, e uma lembrança me arranhou, então, uma coisa perturbadora que eu tinha ouvido a respeito de Moose. Eu não con-seguia recordar. — Ainda o chamam de Moose — foi tudo o que ela disse.
Eu fui tentando, com a maior tranquilidade possível, nos conduzir para fora do quarto em direção à escadaria da frente. Mas assim que comecei a minha descida claudicante, assim que eu começava a me alegrar por ter escapulido daquele vexame potencial sem sequer ter levantado as suspeitas da minha jo-vem anfitriã. só então, uma sombra de prudência desceu sobre ela.
— Você não. quer deixar um recado? Ou um bilhete? — perguntou ela, correndo escada abaixo atrás de mim.
— Não, tudo bem. Eu tentava abrir a porta de entrada.
— Mas eu. eu pensei que você. Mesmo na hora em que me ajudava a abri-la, eu sentia nela o ritmo da preocupação, o que me causou uma culpa correspondente, como se eu tivesse afanado a prataria da família e estivesse prestes a sair correndo.
— Diga à sua mãe que sinto muito não ter.
— Qual é o seu.
Mas eu já estava do lado de fora, correndo pelo gramado — uma cena bi- zarra, deve ter sido — para fugir dela.
Enquanto voltava depressa para a casa de Mary Cunningham, tive um ata- que de ciúme tão violento e inesperado que pareceu doentio. Eu queria aque-la garota. Ela era minha, devia ter sido minha. Até seu nome era meu. Eu queria aquela casa, aquela vida, o garoto com câncer — eu queria aquilo. Queria filhos, gente em volta de mim. Queria mandar a jovem Charlotte para o mundo para viver uma vida diferente da minha.
Tais sentimentos de inveja e remorso me eram tão estranhos que eu mal soube como reagir. Em ocasiões de coação interna, havia uma voz que me falava exatamente da mesma forma que eu falava com Grace: secamente tran-quilizadora primeiro, e, se isso não funcionasse, brusca a ponto de intimidar. Toda a minha vida eu ouvira aquela voz, e quando a sua censura não era sufi-ciente para acalmar o medo em mim, eu agia — caminhava, dançava, dava telefonemas, o que quer que fosse necessário para interromper as queixas. Eu desprezava lamúrias, as minhas mais do que as de qualquer pessoa.
Mas agora eu estava muito cansada para me mexer. Desabei na espreguiça- deira que Mary Cunningham tinha na sala, incapaz de tentar as escadas, e decidi que naquela mesma noite eu perguntaria sobre o conteúdo preciso do elegante armário de bebidas que eu tinha visto em sua sala de estar. No Meio--Oeste geralmente se podia contar com um estoque decente, mesmo na casa de uma velha senhora. Meu rosto doía e latejava. Eu tinha ficado muito tempo fora de casa. Lá em cima, quando tirei o pancake com os cremes especiais que o Dr. Fabermann me dera, meu reflexo monstruoso estava zangado e inchado de um jeito que havia dias não ficava. Como um recém-nascido, pensei, tro-cando olhares com os meus olhos nervosos escaldados — um recém-nascido uivando de dor e indignação.
Embebi um chumaço de algodão em óleo de vitamina E e limpei o rosto com delicadeza. Falei com ele em tons que eram atipicamente tranquilizadores. “Pronto, pronto, agora vamos lá”, eu disse, “não é tão ruim”, passando o óleo na pele quente. Vai dar tudo certo. Essa é a fase zangada da cura, só isso. Vai acabar e aí você vai ter um rosto novo: seu rosto antigo, mas novo em folha, como a casa da Ellen. Essa é a sua Charlotte, pensei, me olhando no espelho. Essa é a sua Charlotte, e você tem que cuidar bem dela para ela ficar uma moça linda quando crescer e ter uma vida extraordinária.

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