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Título do trabalho: A ordem cerebral e as ‘desordens’ do cérebro: uma etnografia da divulgação neurocientífica e da psiquiatria biológica1 Autor: Rogerio Lopes Azize e-mail: rogerioazize@hotmail.com Filiação institucional: Doutorando em Antropologia Social pelo PPGAS/MN/UFRJ GT 19: Natureza, corpo e sentidos Coordenadores: Cynthia Andersen Sarti (UNIFESP), Luiz Fernando Dias Duarte (MN/UFRJ) Resumo: O cérebro, as neurociências e as doenças hoje relacionadas aos neurotransmissores, como as variantes da ‘depressão’ e da ‘ansiedade’, são presença marcante na cultura ocidental contemporânea. Um ‘cerebralismo’ apresenta-se como uma face específica do crescente fisicalismo que informa nossa visão de mundo; nesta versão, o cérebro ganha uma peculiar autonomia em relação ao corpo, dando origem a uma hierarquia entre estes dois elementos - o primeiro gera conseqüências no segundo. A noção de mente, por sua vez, não é abandonada pelo discurso neurocientífico, mas é apropriada como um subproduto do cérebro. As novas tecnologias de visualização e medicamentalização do cérebro são, por um lado, recebidas como novas terapias das quais muitos podem se beneficiar; por outro, desconfia-se das possíveis conseqüências de uma ‘identidade cerebral’, com acusações de ‘reducionismo’. Exploro nesta comunicação dados de uma etnografia que envolve publicações de neurocientistas em um esforço de “divulgação científica”, publicidade de laboratórios farmacêuticos, cursos e congressos cuja temática resumo aqui pelo termo ‘neuro-psiquiatria-biológica’. Palavras-chave: cérebro; neurociências; psiquiatria biológica; divulgação científica 1 Trabalho apresentado na 26ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 01 e 04 de junho, em Porto Seguro, Bahia, Brasil. Ao longo destes capítulos, o leitor ter-se-á rendido à evidência de que o cérebro do homem é constituído por milhares de milhões de neurônios ligados entre si por uma imensa rede de cabos e conexões, de que nos seus “filamentos” circulam impulsos elétricos ou químicos inteiramente explicáveis em termos moleculares ou físico- químicos e de que qualquer comportamento se explica pela mobilização interna de um conjunto topologicamente The explanation given to any relation can survive and develop within a given society only if this explanation is stylized in conformity with the prevailing thought style. O cérebro nunca foi tão visível. Do ponto de vista das “ciências do cérebro” ou “neurociências”, o sentido desta frase se justificaria fazendo alusão às tecnologias de neuroimagem funcional, que permitem ver e estudar o cérebro vivo, ‘in motion’. Do ponto de vista do qual me coloco, o das ciências humanas, da antropologia em particular, não é menor a sua visibilidade, mas por outras razões: o cérebro tem sido personagem freqüente em reportagens nas maiores revistas do Brasil, tem publicações exclusivamente dedicadas a ele, e espaço em horário nobre na TV. O cérebro é hoje um órgão midiático, com presença marcante em um universo muito além das publicações especializadas em neurociências. Quem ainda não viu, ao folhear uma revista ou ligar a TV, uma rede de neurônios interligados, ruídos de impulsos elétricos ou explicações sobre reações químicas? Ou ainda a imagem de ‘cérebros coloridos’ pelos exames de ressonância magnética funcional, na tentativa de estabelecer correlatos neurais para doenças, sensações e sentimentos? Ou uma animação que mostra como operam os neurotransmissores, como neurônios se comunicam entre si, e como certas drogas podem modificar a concentração de serotonina ou noradrenalina envolvidos neste processo? Se o cérebro mostra-se aos olhos dos especialistas através de exames funcionais que permitiriam construir correlatos neurais de N tipos, mostra-se também ao público leigo através da grande mídia, de obras de divulgação científica para adultos e crianças e do esforço publicitário de laboratórios farmacêuticos com produtos que atuam no sistema O cérebro tem um lugar peculiar nos discursos contemporâneos sobre o corpo humano. Ele pode sentir, apaixonar-se, ouvir, ver, adoecer, ser treinado e aprimorado. Para Emily Martin, uma das vozes críticas ao que ela chama de “neuroreducionismo”, o determinismo neurológico seria o “novo disfarce da natureza” (2000:585). Com status de sujeito, o cérebro tornou-se um órgão inevitável, incontornável, tema de debates que podemos chamar de científico-morais2, visto envolverem questões como identidade pessoal, livre-arbítrio, liberdade e autonomia. O cérebro tornou-se um personagem central para a nossa definição de identidade pessoal, de sujeito. Das neurociências à filosofia, da medicina à antropologia, especialistas têm se esmerado em comentar o lugar do cérebro hoje em relação ao nosso corpo e nossa cultura, em discussões – diretas ou indiretas, já que nem sempre se trata de interlocutores – nas quais tensões são mais comuns do que concordâncias. Os debates apaixonados que se multiplicam sobre o seu funcionamento, funções e doenças são sinal deste lugar especial do cérebro. O adjetivo apaixonados já avança aqui a idéia de que os discursos sobre o cérebro não são ideologicamente neutros – e isso inclui, é claro, o meu próprio. Nestes debates estão em jogo alguns dos valores centrais à cosmologia que atravessa a cultura ocidental moderna: autonomia, liberdade, razão, autenticidade. Em outras palavras, ao analisar discursos da ciência sobre o cérebro, temos um atalho particularmente rico para aceder à noção de Pessoa que faz parte de uma determinada visão de mundo.3 Um neurocientista modificaria a frase acima, concordando com o lugar particular do cérebro, mas afirmando que a nossa noção de Pessoa é sustentada por ele: 2 Estou fazendo um paralelo com a categoria ‘físico-moral’, como usado em Duarte (1986) para designar perturbações relacionadas a uma totalidade da pessoa, que tem conseqüências para além da sua manifestação no corpo. Alguém poderia dizer já agora que toda doença é físico-moral, assim como todo debate e fazer científicos seriam também “guerra e discurso”. Mas digamos que algumas querelas científicas em torno do corpo humano são mais morais do que outras, expondo essa tensão de forma mais clara. Vide não apenas aquelas que dizem respeito ao cérebro, mas também as discussões sobre células-tronco, aborto e manipulação genética. 3 Russo e Ponciano (2002:349) já haviam formulado está idéia em um texto sobre o “sujeito da neurociência”: “acreditamos que examinar as novas teorias sobre a pessoa produzidas no âmbito da neurociência significa examinar uma nova forma de compreender/interpretar a pessoa que, ao mesmo tempo, indica novos modos de construção de si”. In our era, we know that it is our brain that sustains, manages and generates our sense of self, of personhood, our sense of others and our humanness. The brain is a complex organ, like the heart, kidneys, and liver. But when we think of those organs, we don’t get romantic or concerned about them as entities unto themselves. (Gazzaniga, 2005, 31) Não se trata de novidade a atribuição de uma importância central, de emoções ou de características morais a este ou aquele órgão do corpo humano. O coração ainda hoje tem um lugar de destaque no imaginário ocidental, os pulmões já tiveram lugar importante em outros sistemas médicos que não o modelo biomédico atual. Mesmo um ‘ufanismo cerebral’ não é exatamente uma invenção do final do século XX, remetendo, em uma primeira parada, à primeira metade do século XIX, quando se estabelecem as bases da neurociência; e, numa segunda parada, à agenda materialista do século XVIII.4 Mas, longe de se afirmar com isso que não há nada de novo no assunto, pelo contrário, afirmo a pertinência da discussão. Explicar porque hoje, como disse Gazzaniga, um destacado neurocientista, acabamos por “get romantic” quando falamos do cérebro é um desafio instigante e complexo. Uma de minhas hipóteses aqui vai no sentido de uma autonomização desse órgão, seja no discurso erudito, seja no discurso leigo. O cérebro, por assim dizer, ganhou vida própria, um órgão ao qual se faz referência na terceira pessoa. Ora, alguém poderia argumentar que é assim também que nos referimos aos nossos rins. Mas não atribuímos aos rins o controle da nossa racionalidade e das nossas emoções, de nossos reflexos e crenças, da criatividade e da memória.5 Definitivamente, nós não somos os nossos rins. Tampouco se encontra alguma representação que relacione um fígado a cada indivíduo, ainda que isso seja um fato empírico. Mas um neurocientista convidado a participar de um debate sobre o individualismo pode justificar a sua presença enunciando a idéia de que “a cada cérebro, corresponde um e um único indivíduo” (Percheron, 1987:95). Não se trata de nenhuma interpretação forçada, mas de uma idéia explícita; para a neurocientista e psiquiatra Nancy Andreasen, “o cérebro é a essência 4 Será necessário uma discussão mais aprofundada desses períodos, uma chave histórica para a compreensão do quadro atual no debate sobre neurociências e a problemática mente/corpo. Por enquanto, limito-me a dizer que tanto princípios vitalistas relacionados a Naturphilosophie do início do século XIX, quanto os princípios materialistas relacionados ao Iluminismo serão úteis para a discussão. 5 Ao menos não dentro do escopo da lógica biomédica, hegemônica dentro do escopo da cultura ocidental moderna ao qual me limito. daquilo que nos define como seres humanos. Compreender a sua estrutura e o seu funcionamento é compreender a nós mesmos.” (Andreasen, 2005: 43) Uma batalha intelectual vem sendo travada neste campo de debate. O que está em jogo aqui é o estatuto da relação entre mente e cérebro, e se os discursos sobre essas duas entidades podem ser de alguma forma relacionados. Para um neurocientista como Jean Pierre Changeux, a resposta é sim: para ele, recentes avanços na neurociência abrem uma janela para que se fale em uma “física da alma” (2000:52) ou em uma “moderna biologia do espírito” (1985:9). Para um filósofo como Paul Ricoeur (2000), são discursos irredutíveis um ao outro: ou falamos de neurônios, ou de pensamentos, ações e As “ciências do cérebro” passam hoje por um momento peculiar, de celebração do que já se teria atingido, de otimismo quanto às possibilidades futuras e de grande exposição pública. Neurocientistas e psiquiatras de uma linha biológica aparecem em espaços de referência na grande mídia, como as páginas amarelas da revista Veja ou o programa Fantástico, na Rede Globo. Um ‘ufanismo neurocientífico’ justifica-se com base em descobertas recentes, mas também baseado em expectativas para o futuro, que trabalham com a noção de que a ciência avança de forma incomensurável. Estaríamos na “era de ouro da neurociência”, e o projeto para o século XXI seria encontrar uma “penicilina para a doença mental” (Andreasen, 2005); estaríamos recém-saídos do que o congresso americano designou a “década do cérebro” (os anos 90), mas somente recém- entrando no que alguns chamam o “século do cérebro”. Todos estes períodos “do cérebro” e “da neurociência” parecem apontar para um novo capítulo do já tão debatido fisicalismo que constitui um dos traços marcantes da cultura ocidental, traço que foi exacerbado durante o século XX. Uma certa noção de ‘pessoa’ está informada hoje por um cerebralismo, uma visão de mundo que liga um indivíduo ao seu cérebro e situa neste órgão o locus de nossa identidade pessoal.6 É sobre esta noção de ‘pessoa’ e sobre algumas de suas manifestações contemporâneas que me debruço aqui. 6 Sobre este tema, seria necessário em um espaço mais amplo apresentar uma revisão bibliográfica de autores que caminham em direção semelhante. Ehrenberg (2004) fala em um “sujeito cerebral” e na emergência de uma “neurobiologia da personalidade”. Para ele, no quadro do sucesso atual das neurociências, o cérebro “não pode ser mais considerado hoje somente como um objeto científico e médico, ele foi promovido também a ator social”, podendo tornar-se um “objeto de identificação, um meio de se reconhecer como agente social” (p.133). Nikolas Rose (2003, 2007) vem denunciando o que ele chama um etnografia de discursos sobre um órgão e seus transtornos Este artigo é parte de um esforço de pesquisa que poderia ser chamado multi-sited. Fui levado a este formato pelo ‘campo’ que se desdobrava à minha frente, e apontava em mais de uma direção. Para utilizar uma imagem ‘cerebral’, eu me senti – e me sinto ainda, já que se trata de um work-in-progress, etnografia para uma tese ainda em confecção – como em circunvoluções. O cérebro, na verdade, não foi meu ponto de partida, e sim um tema inevitável que se impôs a partir de um interesse primeiro em discursos sobre a ‘depressão’ e a ‘ansiedade’, a publicidade de laboratórios farmacêuticos e a medicamentalização do cotidiano. Assim, interessado na dinâmica publicitária da indústria farmacêutica, participei do XXV Congresso Brasileiro de Psiquiatria, em 2007, informado que os laboratórios têm uma grande área reservada para a divulgação de seus produtos. Em uma manhã de congresso, reuni mais material publicitário de laboratórios sobre doenças ligadas ao sistema nervoso central (segundo o paradigma neuro- psiquiátrico atual) do que em todos os meus esforços anteriores, incluindo minha pesquisa para o mestrado. Mais do que o acesso a material publicitário, o congresso acabou sendo uma oportunidade para acompanhar ‘ao vivo’ a relação dos laboratórios com os médicos e as mecânicas de divulgação de produtos farmacêuticos. Em outro registro dessa etnografia, alguns meses antes um amigo me entregou um folder que anunciava um curso cujo tema era “neurociência do cotidiano”. Tratava-se de um curso de curta duração, com 4 aulas, que se propunha a ser uma espécie de breve introdução às neurociências para leigos; o curso era oferecido em uma escola na zona sul do Rio de Janeiro, na qual se ministram outros cursos com temas tão variados quanto cinema, filosofia, psicanálise e música. Matriculei-me no curso, interessado no conteúdo, mas também na situação em si: como se traduz ao público leigo o saber de uma área do “self neuroquímico” e uma “individualidade somática”, termos que falam de uma mutação mais ampla “na qual nós, no Ocidente, mais especialmente nos EUA, passamos a entender nossas mentes e selves em termos de nossos cérebros e corpos” (Rose, 2003:46). Vidal (2005) sugere o uso da expressão “brainhood” para designar o que seria “a qualidade ou condição de ser um cérebro”; a idéia é interessante, desde que a expressão não substitua, como parece ser o caso no artigo em questão, o conceito de “personhood”, que vem a ser uma categoria de análise mais ampla, ao menos do ponto de vista da antropologia. Assim sendo, “brainhood” poderia ser sim um dos traços fortes de uma noção de ‘pessoa’ em nosso tempo. conhecimento tida como super-especializada e complexa?; qual seria o público interessado em uma introdução às neurociências? A experiência acabou me despertando para um outro fenômeno interessante: a popularização das neurociências e a publicação de livros de divulgação científica nessa área. Minha intenção é analisar justamente este subproduto deste momento nas neurociências: não aquilo que poderíamos chamar de hard-science, artigos em revistas científicas de prestígio, mas sim os trabalhos de ‘popularização neurocientífica’, aqueles nos quais os profissionais da área ou jornalistas de ciência se propõem a explicar o funcionamento do cérebro para um público leigo. Trata-se de um fenômeno, ao que parece, recente. Façamos uma pequena ‘antropologia’ das minhas próprias referências bibliográficas: entre elas, pouca coisa se encontra que tenha sido publicada antes do ano 2000; e isso não porque eu tenha optado por, entre outras possibilidades, trabalhar com o material mais atual possível ou porque tenha feito uma revisão bibliográfica exaustiva. Ainda que tenha sido exaustiva para mim, o material aqui citado é apenas uma amostra, ainda que significativa, do que vem sendo publicado em termos de popularização neurocientífica e reportagens sobre diversos aspectos do cérebro. Na verdade, também é recente a bibliografia que problematiza o lugar do cérebro na cultura contemporânea, a ampliação do uso de psicofarmacêuticos, a explosão de diagnósticos de doenças cuja etiologia estaria ligada a um mau funcionamento dos neurotransmissores. Sobre este assunto, boa parte do debate disponível é realmente Além de multi-situado, os dados de campo que reuni são fragmentados. Com o passar do tempo, vi uma pilha heterogênea crescer em minha mesa de trabalho, ao lado do computador. Fazem parte desta pilha textos de ciências humanas sobre o meu tema de pesquisa, peças publicitárias de laboratórios farmacêuticos, livros de popularização científica sobre neurociência, uma coleção de livros infantis tendo neurônios como personagens, reportagens de variadas revistas cujo tema passa pelo cérebro ou pela depressão, meu diário de campo, e a lista poderia continuar. Juntarei a heterogêneo e fragmentado o adjetivo angustiante; perdi muito tempo me perguntando por onde começar, o que cortar, e se eu não teria perdido o foco inicial (de fato perdi, mas até aqui considero que isso seja positivo.). Com o passar do tempo, os meus sistemas de classificação deste material – jornalismo aqui, publicidade ali, teoria de tal tipo lá – falhavam, e lá estava a ‘pilha’ mais uma vez, desarrumada, inclassificável; para “piorar” a situação, essa pilha era curiosamente alimentada por amigos, familiares e conhecidos que me chegavam com material, sempre pertinente, sobre o tema. Não é a generosidade de pessoas que me cercam que quero comentar aqui, mas sim o fato de tantos dados de campo terem caído no meu colo. Durante algum tempo, este fato foi taken for granted; depois percebi que isso falava alguma coisa sobre a ‘natureza’ do meu tema. Dificilmente o mesmo aconteceria se eu estivesse trabalhando sobre alguma região ou assunto mais estrangeiro ou esotérico para a maioria das pessoas. Mas, ao que parece, o cérebro e doenças a ele relacionadas são um tema, ainda que não obsessivo, interessante para o público em geral, fazendo parte hoje de uma cultura leiga. Em outras palavras, além do material que me era entregue de presente em si, o fato de muito material me ser entregue, por si só, mereceria alguma reflexão. Isso fala de uma circulação de idéias e valores entre um público mais amplo e do interesse que representações sobre o cérebro despertam. O conjunto de esforços etnográficos acaba soando como uma experiência que inclui movimentos mais e menos sistemáticos, o que de fato vem ocorrendo.7 Mais do que uma escolha, trata-se de uma forma de funcionamento que o formato do campo impôs. Em um trabalho no qual discutem as origens dos conceitos neurocientíficos no século XIX, Clarke e Jacyna (1992) afirmam que o tema não pode ser compreendido se divorciado da cultura mais ampla, não-científica, da filosofia e da visão de mundo de uma época. É neste sentido também que, para Percheron (1987), os discursos sobre o cérebro não são ideologicamente neutros – uma observação particularmente interessante visto tratar-se ele mesmo de um neurocientista. Ao revisar a bibliografia sobre a história dos conhecimentos sobre o cérebro, o autor retoma as controvérsias entre localizacionistas e 7 Para uma experiência de pesquisa semelhante, e com um tema aproximado, ver o trabalho de Nelkin e Lendee (1995) sobre a “mística do DNA” na cultura norte-americana. Para elas, “popular culture matters”, assim como o discurso científico. Concordo com elas em sua proposta de análise que leva em conta de forma equivalente a divulgação científica e tiras de quadrinho que tenham o DNA como tema. “The point of our analisys, dizem elas, is not to identify popular distortions of science or to debunk scientific myths. The interesting question is not the contrast between scientific and popular culture; it is how they intersect to shape the cultural meaning of the gene” (p.4). Não seria absurdo falar do sucesso atual das neurociências como uma ‘mística do cérebro’, parafraseando as autoras. anti-localizacionistas, para demonstrar que um debate “pretensamente científico era de fato político” e nuançado: enquanto de forma geral os localizacionistas eram tidos como hostis à ordem, adversários da pena de morte, anticlericais, ateus e republicanos, na Alemanha, às voltas com seu processo de unificação, são os anti-localizacionistas que É claro que construir esse tipo de relação fica mais fácil quando se trabalha com o passado. Mas uma análise, ainda que superficial, de uma determinada posição dentro da filosofia contemporânea, pode nos dar algumas pistas de relações possíveis com o atual sucesso das neurociências. No que me parece ser uma boa introdução aos tópicos filosóficos principais relacionados ao debate cérebro/mente, Matthews (2007) analisa um artigo particularmente significativo de Paul Churchland, filósofo ligado a uma visão chamada “materialismo eliminativista”: O materialismo eliminativista é a tese de que nossas concepções de senso comum sobre os fenômenos psicológicos constituem uma teoria radicalmente falsa, uma teoria tão fundamentalmente defeituosa que ambos os princípios e a ontologia desta teoria eventualmente se deslocarão, ao invés de serem reduzidos suavemente, pela neurociência consumada (Churchland, 2004:382, citado em Matthews, 2007:48) Uma “neurociência consumada” apresentaria um substituto mais adequado para o que Paul Churchland chama “folk psychology” ou psicologia do senso comum, porque enquanto a segunda trabalha com conceitos que fazem uso da idéia de intencionalidade, incomensuráveis com as categorias da ciência física, “a neurociência utiliza os mesmos tipos de conceitos das outras ciências físicas e, portanto, é coerente com elas como parte de uma explicação científica unificada sobre o mundo, incluindo a nós próprios”. (Matthews, 2007:51) Vale dizer que esse posicionamento defendido por Paul Churchland e outros autores filiados a esta corrente gera uma resposta por parte de autores filiados às ciências humanas, que advogam, a partir de diferentes enfoques, contra teses neuroreducionistas. É o caso do filósofo Paul Ricoeur, em um livro cujo formato é raro: trata-se de um diálogo entre ele e o neurocientista Jean-Pierre Changeux, que ganhou notoriedade com a obra “O Homem Neuronal”, de 1983. Um dos argumentos centrais de Ricoeur é o combate ao que ele considera ser um amálgama semântico que reuniria dois discursos, um que diz respeito ao corpo e ao cérebro, e um outro que diz respeito à mente. Para Ricoeur, estas seriam perspectivas heterogêneas, que não podem ser reduzidas uma a In the one case it is a question of neurons and their connection in a system; in the other one speaks of knowledge, action, feeling – acts or states characterized by intentions, motivations or values. [.] .I do not see a way of passing from one order of discourse to the other: either I speak of neurons and so forth, in which case I find my self in a certain language, or I speak of thoughts, actions and feelings that I connect with my body, to which I stand in a relation of possession, of belonging (Ricoeur, 2000:14-5) A relação que o sujeito entretém com o seu cérebro, argumenta Ricoeur, é de um tipo específico, que não pode ser comparado com a relação que se tem com, por exemplo, a própria mão ou com os olhos. O cérebro, em sua opinião, não faz parte da nossa experiência corporal (bodily experience); ele seria um objeto da ciência e não da nossa experiência cotidiana (p.49). Apesar de concordar a princípio com Ricoeur, a análise que apresento do material de divulgação neurocientífica para o público leigo aponta justamente para essa possibilidade, a de que o cérebro venha a ser experimentado pelas pessoas, em sua vida cotidiana, como uma experiência corporal. Mas antes dessa discussão, vejamos uma resposta dada pela antropóloga Emily Martin - que vem refletindo em últimos trabalhos (2000, 2007) sobre o lugar do transtorno bipolar na cultura norte-americana - àqueles que postulam um monismo ou materialismo eliminativista. Para ela, os pressupostos dessa posição consistem em um erro categorial: U.S. folk psychology will not necessarily be replaced by the view that inner states are neural structures, any more than a habitual gambler’s view that a score of 21 wins a hand of blackjack would be replaced by the view that habitual gambling is caused by possessing a particular set of genes. If a more reductionistic and brain-based picture of human action displaced our current everyday mental concepts, it would not be because (or solely because) the neural net theory had won in the court of scientific opinion. It would be because the environment we live in (and that scientific theories are produced in) had shifted so that a brain-centered view of a person began to make cultural sense. (Martin, 2000:575) Acredito que o ambiente no qual estamos vivendo já tenha incorporado essa visão cerebralista de pessoa, ainda que convivendo com uma miríade de outras representações. Para mim, o fato de intelectuais ligados às ciências humanas começarem a ocupar este debate de forma mais intensa é um sintoma disso. Ainda que seja ingênuo atribuir esse espírito cerebralista de nosso tempo somente ao sucesso público das neurociências hoje, estou convencido do rendimento de uma análise que se dedique ao conteúdo da divulgação neurocientífica; especialmente porque este material parece construir exatamente aquilo que Ricoeur diz não existir: uma bodily experience do cérebro, que começaria a fazer sentido em nossa cultura. Sem dúvida, existem muitas formas de se debruçar sobre a produção de fatos científicos a partir de interesses antropológicos; uma delas é entrando no espaço do laboratório, esforço que tem referência importante no trabalho pioneiro de Latour e Woolgar (1997). Mas, se levarmos a sério o desafio que eles se colocam - efetuar uma união entre o contexto científico e o contexto social - as entradas etnográficas se multiplicam. Eu não diria que o meu trabalho se encaixa no rótulo “antropologia da ciência”, mas quero flertar com a linguagem desta sub-área. Estou em busca de espaços nos quais discurso científico e discurso leigo se tocam, se interpenetram, se misturam, se Quando comecei a me deparar com a palavra ‘mente’ nas peças de divulgação neurocientífica, confesso que a princípio me surpreendi. Por desinformação, achei que o vocabulário neurocientífico não incorporava conceitos dessa ordem, simplesmente substituindo-os por neurônios, sinapses, neurotransmissores, impulsos elétricos e reações químicas; mas a ‘mente’, assim como o ‘corpo’, estavam lá, ao lado deste arsenal de conceitos que explicam o funcionamento do cérebro. Entre os meus ‘nativos’, o cérebro tem autonomia em relação ao corpo. Melhor dizendo, há uma hierarquia entre estes dois elementos, cérebro e corpo, no qual o primeiro gera conseqüências no segundo. O mesmo vale para a relação entre cérebro e mente: a forma como a idéia de mente aparece representada em materiais de divulgação neurocientífica tende a reduzi-la a um fenômeno segundo. Por exemplo, ao comentar a influência de fatores ‘genéticos’ e ‘não-genéticos’ para explicar as causas da depressão/ansiedade de um paciente, Nancy Andreasen oferece Seja qual for a combinação de fatores, sejam eles “genéticos” ou “não-genéticos”, interagiram entre si. Alguns eram “físicos”, como a gripe, e alguns “mentais”, como as experiências de sua vida. Eles afetaram o seu cérebro e a atividade e funções do cérebro, conhecidas como mente. (Andreasen, 2005: 39) Para entender como as perturbações no cérebro levam a perturbações na mente, precisamos de um entendimento rudimentar de como o cérebro é organizado e como ele funciona para produzir os pensamentos, as emoções e a identidade pessoal. (Andreasen, 2005: 39) Antes que qualquer coisa aconteça em um nível ‘mental’, algo se passou no cérebro. A mente é uma espécie de epifenômeno do cérebro, submetida a este, posicionada em um outro nível hierárquico. No curso de “neurociência do cotidiano” que frequentei, inúmeras vezes esta hierarquia ficou explícita, como quando se discutiu a questão do sono. A professora falava sobre o cortisol, “o mais importante hormônio para a regulação do estresse”, com a função de ajustar “o funcionamento do corpo conforme as necessidades do cérebro”. Ainda sobre o estresse, ela comenta que se trata de uma força que atua sobre o cérebro e “exige uma resposta, uma atitude do cérebro e do corpo”. Este tipo de ajustamento “conforme as necessidades do cérebro” me fez lembrar uma análise de Emily Martin em “The woman in the body” acerca do discurso científico da reprodução feminina; as metáforas da relação entre cérebro, hormônio e ovário remetem a relações de hierarquia e não – ela insinua que isso poderia ser uma possibilidade – “um conselho que chega às suas decisões considerando influências mútuas”. (2006:86) A menopausa, então, é representada como uma falha no sistema de autoridade. Respeitadas as diferenças, o que Martin demonstra é que as metáforas científicas são construídas a partir de uma escolha entre outras possíveis. Uma hierarquia entre cérebro e mente também aparece no livro infantil “o neurônio apaixonado”. Trata-se do primeiro volume de uma coleção de livros infantis com 5 volumes chamada “Aventuras de um neurônio lembrador”, de autoria do neurocientista Roberto Lent.8 Em cada volume, enquanto um garoto chamado Ptix se apaixona ou aprende a andar de bicicleta – em termos gerais, enquanto ele faz uso dos seus sentidos -, vemos paralelamente o que está acontecendo em seu cérebro. O cérebro ganha uma representação lúdica, na qual neurônios com funções diversas (o neurônio da emoção, o neurônio da visão e outros) ganham vida e agência, viram personagens que interagem entre si, com conseqüências nos sentimentos e sentidos do Ptix. Neurônios viram personagens de uma história em quadrinhos e são as aventuras deles que explicam as reações do garoto ao mundo que o cerca. Por enquanto, quero chamar atenção para a última página dos livros da coleção, que traz um texto com “dicas para os adultos” e apresenta os objetivos educacionais do livro: Neste livro, pelo menos dois conceitos importantes são veiculados às crianças: o primeiro, de que até as operações mais complexas da mente, como é o caso das emoções, são controladas por neurônios. O segundo é que as emoções têm um componente psicológico, subjetivo, mas também um vasto repertório de fenômenos corporais que o acompanham, variáveis para cada emoção, mas raramente ausentes. Ambos componentes são controlados pelos neurônios das emoções e seus circuitos. (Lent, 2004: 31) Além de mostrar um exemplo de como a idéia de ‘mente’ é utilizada em um material com objetivo de educação neurocientífica, esta coleção de livros infantis nos mostra situações em que o cérebro de fato poderia ser vivenciado como uma ‘experiência corporal’ - para voltar ao tema levantado por Paul Ricoeur - e até como uma experiência afetiva. No primeiro volume, o garoto Pedro Tiago (Ptix é o apelido), apaixona-se pela 8 No final de agosto de 2006, estava em cartaz no Rio de Janeiro uma peça de teatro baseada na coleção, divulgada no Jornal JB de 25 de agosto de 2006. Em setembro de 2006, uma entrevista com o autor da coleção foi publicada pela Revista Veja (data de capa 27/09/2006), na qual ele reflete sobre os dilemas éticos em torno das neurociências. sua nova vizinha. Mas, durante a história, vamos perceber que dizer “Ptix apaixonou-se” é apenas parte da explicação. As reações físicas da paixão do garoto são recebidas com estranhamento pelo personagem Zé Neurim, personagem central da trama no nível neurológico, “um neurônio lembrador, quer dizer, um neurônio que ajuda a memória do Ptix a funcionar”. Zé Neurim empreende uma pesquisa com os outros neurônios para saber o que teria gerado a estranha reação, que incluía o coração disparado, gotas de suor na testa e respiração acelerada. A trama envolve um novo encontro entre Ptix e a sua vizinha, um plano arquitetado pelos próprios neurônios. Zé Neurim vai descobrir que a causa estava no “setor de paixões e felicidades”, onde trabalha um outro personagem chamado Acumbente dos Prazeres9: “Apaixonado, o Acumbente deixou o Ptix também apaixonado! Zé Neurim pensou: - Onde já se viu neurônio apaixonado?” (p.27). O Acumbente estava “totalmente fora de si, dando ordens para o coração do Ptix bater mais rápido, a respiração acelerar, o suor suar, e assim por diante”. Atribuir esse nível de agência ao cérebro - esta é a hipótese que quero defender aqui – abre caminho para que se possa pensar em uma terceira linguagem, retomando o debate entre Ricoeur e Changeux (op. cit.), que inclua o vocabulário neurocientífico e a idéias ligadas ao campo da mente e da intencionalidade. Na coleção “Aventuras de um neurônio lembrador”, os neurônios têm intenções e sentimentos. Na grande mídia, também podemos encontrar esse tipo de representação que, de certa forma, ‘humaniza’ o cérebro, atribuindo-lhe determinadas características. Vamos tomar como exemplo uma reportagem publicada na revista Época10 sobre softwares e jogos para o que se chama “treinamento cerebral”. O princípio é o de que “seu cérebro funciona como um músculo. Quanto mais usá-lo, mais forte ele ficará”, e a prática de esportes é utilizada mais de uma vez como um exemplo de referência; especialistas na área são citados para sustentar a idéia de que “Qualquer forma de atividade de aprendizado é boa, pois ela desafia o cérebro, e o cérebro gosta de ser desafiado”; um neurocientista afirma que “Quase tudo 9 Nas “dicas para os adultos”, vamos aprender que o núcleo acumbente é a área do cérebro envolvida no controle das emoções. “Os neurônios acumbentes fazem parte de um circuito que emprega a substância chamada dopamina como mensageiro sináptico. Esse circuito é muito importante para as emoções que provocam prazer, e esta envolvido nos mecanismos neurais da dependência química”. (p.31) 10 Data de capa 10 de março de 2008. Na capa, o cérebro é representado como um quebra-cabeças; uma última peça está sendo encaixada pela mão de uma pessoa. Na chamada, lê-se “Você pode virar um gênio? O que há de verdade nos novos jogos que prometem melhorar o desempenho do seu cérebro – e são cada vez mais vendidos”. pode ser melhorado. O cérebro é maciçamente moldável – se for trabalhado da maneira correta”; um jogo tem o objetivo de treinar os usuários para “extrair o máximo de seu córtex pré-frontal”, região do cérebro, afirma a revista, “considerada como sede da É claro que não se trata de características quaisquer, mas de um conjunto de atributos que fazem ressonância entre si. Uma das hipóteses que pretendo testar é se há um paralelo entre certas características que hoje são atribuídas ao cérebro e valores que fazem parte, por assim dizer, da ‘bula’ de valores para o indivíduo contemporâneo. O órgão passa a ter determinadas características positivadas em nosso tempo: o cérebro ‘gosta de desafios’, é ‘plástico’, ‘gosta de novidades’, pode e deve ser exercitado para otimizar as suas possibilidades. Sem dúvida, trata-se de um conjunto de valores que recebe um sinal positivo, por exemplo, no mercado de trabalho. 11 Fica claro que uma visão cerebralista faz parte do arsenal de valores que compõe nossa visão de ‘pessoa’ hoje, ao menos no que diz respeito às classes médias e altas no contexto que podemos chamar ‘cultura ocidental moderna’. Mas não se trata de um conjunto de idéias ou de um campo semântico que se afirma sem tensões com outros. Em duas situações de campo, pude presenciar essas tensões em movimento, primeiro entre a neurociência e a psicanálise, depois entre a neuro-psico-farmacologia e a psicanálise. Descrevo essas duas cenas a seguir, com fragmentos do meu diário de campo. Em 2007, freqüentei um mini-curso intitulado “neurociência do cotidiano”, oferecido pela professora Suzana-Herculano, neurocientista da UFRJ que vem trabalhando com ‘divulgação científica’, em uma escola chamada POP (Pólo de pensamento contemporâneo), um espaço que lembra a mais antiga ‘Casa do Saber’, no Rio de Janeiro. A primeira aula tinha como tema ‘a organização do comportamento’. Tivemos ali, em uma turma com cerca de 25 pessoas, uma introdução ao modus operandi do cérebro. Um dos temas era “a forma como o 11 Em um trabalho recente, Emily Martin (2007) desenvolve a hipótese de que haveria uma afinidade entre um certo comportamento cultivado e cultuado dentro na cultura corporativa norte-americana, e os sintomas relacionados ao pólo maníaco da bipolaridade. Neste sentido, inovação, intensa energia, adaptabilidade e mobilidade seriam características comuns entre um diagnóstico e um tipo de comportamento incentivado e premiado em certos contextos. cérebro aprende”. A professora fez conosco testes de memorização, que deveriam mostrar os limites de nossa memória; frente a uma lista de 10 palavras, ditas por elas em voz alta, os de melhor performance citavam entre 5 e 7 palavras, cores ou conceitos. Após estes testes, um homem presente, contando por volta dos 50 anos, perguntou à professora sobre Freud e a ‘atenção flutuante’ do analista. Ela respondeu com uma negativa simpática, simplesmente dizendo que esta idéia não fazia sentido para a neurociência, para quem atenção estaria ligada a ‘foco’. Um pouco mais tarde, este mesmo homem questionou a respeito de certas sensações (um dos temas da aula era ‘percepção’) e sentimentos que, segundo ele “emburrecem a gente, como o medo e a neurose”. Mais uma vez ela disse que não, que na verdade se tratam de sensações importantes, com veríamos na semana que vem. O mais interessante foi a reação de um outro aluno, que eu também situaria em seus 55-60 anos, que pediu ao primeiro que não insistisse nessas temáticas, já que “isso aqui não é psicanálise, é neurociência”. O primeiro argumenta que gostaria de ouvir o que a neurociência tem a dizer sobre a psicanálise. O debate entre os dois não foi além, é verdade, mas saí dessa primeira aula com uma sensação curiosa: na zona sul do Rio de Janeiro com uma assistência de classe média, média-alta, alguém que fazia uso de um vocabulário psicanalítico viu-se fora de lugar, silenciado. Este homem que falou em ‘neurose’ e ‘atenção flutuante’ não voltou para as aulas seguintes. Tampouco o tema voltou à tona durante o resto do curso. Cheguei a Porto Alegre para o Congresso Brasileiro de Psiquiatria de 2007. Interessava-me a programação científica do congresso, mas o meu foco eram os espaços de relacionamento entre a indústria farmacêutica e os participantes. Não precisei ir muito longe: tão logo fiz a inscrição, fui ao próximo salão, um espaço de estandes de laboratórios. Naquela primeira manhã, além de conseguir coletar um grande número de folhetos e monografias sobre medicamentos, fiquei atento a um painel pelo qual passei no estande do Rivotril (Clonazepam), um medicamento indicado para vários transtornos de ansiedade e de humor, mas que vem sendo indicado especialmente como tratamento da ‘síndrome do pânico’. Era uma tela grande, com várias pequenas latas de tinta próximas a ela. Além de outras formas, mais ou menos irregulares – um duende, um gato, olhos, uma estrela, um coração, a palavra “Rivotril” em destaque – lia-se na parte de baixo da tela a frase “viva a psicanálise”. Tive o reflexo de fotografar esta imagem, porque achei interessante a valoração da psicanálise no estande de um medicamento. Segui a minha caminhada, abismado com os estandes, mas animado com o rendimento deste contato para a minha pesquisa. Quando voltei, algumas horas mais tarde, o quadro que encontrei era outro. As intervenções haviam se multiplicado, a tela tinha menos espaços vazios, e da frase “viva a psicanálise” havia sobrado somente o “viva”. O resto da frase estava coberto por novas pinturas. Perguntei a um dos promotores se eles haviam trocado a tela. Ele me disse que não, e explicou que se tratava de uma “obra conjunta”, que qualquer participante poderia fazer uso das tintas e pintar alguma coisa. Comentei sobre a frase que havia sumido, e ele me disse “é, só ficou o viva. deve ter sido algum psiquiatra clínico que passou por aqui. e esse ‘rivotril’ não fomos nós, As duas cenas se passaram em contextos que – isso me parece evidente – não favoreciam um diálogo entre o vocabulário da neurociência / psiquiatria biológica e um outro proveniente da psicanálise. De qualquer forma, são cenas que falam da convivência de dois sistemas, ainda que um deles não tenha sido tomado (na verdade, tenha sido literalmente calado ou apagado naqueles contextos) com um interlocutor, seja devido a dinâmicas que se referem ao mercado de medicamentos, no segundo caso, seja porque o espaço de um curso sobre neurociências em nada favorece um discurso com o vocabulário da psicanálise, no primeiro. 12 Nestas duas cenas, vemos movimentos que 12 Bezerra Jr. (2000) afirma que a psiquiatria-biológica atual – que compartilha em muito do vocabulário da neurociência – deixou de lado a idéia de que a experiência humana comporta duas dimensões, por um lado parecem confirmar um enfraquecimento do dualismo corpo/mente, com vem sendo apontado por diversos autores. (Bezerra Jr., 2000; Russo, 2001; Russo e Ponciano, 2002) Por certo, esse anunciado enfraquecimento faz com que a balança penda na direção do corpo, ou, mais especificamente, do cérebro, no caso da experiência etnográfica aqui em questão. Mas é preciso atentar que este movimento não se dá sem tensões e resistências; os avanços de um paradigma fisicalista/cerebralista têm gerado respostas em diversos campos das ciências humanas, como vimos aqui, assim como de profissionais da área psi que não aderiram ao cérebro como uma nova natureza do ser humano. O curioso é que a idéia de mente neste contexto não é apagada. O campo das neurociências continua a fazer uso do conceito, mas se trata agora de uma entidade totalmente subordinada ao funcionamento do cérebro. Essa ‘moderna biologia do espírito’, nas palavras de Changeux (1985), inclusive retomam, como um aliado curioso, dado o quadro atual, um certo Freud e mesmo quadros mais recentes da psicanálise, como se vê na abertura do livro “O Homem Neuronal”: O Homem Neuronal nasceu em 1979 de uma conversa com Jacques-Alain Miller e seus colegas na revista Ornicar?, que se converteu entretanto em L’Âne. Este diálogo vivo entre psicanalistas e neurobiologistas teve o mérito de demonstrar, contra toda a expectativa, que os protagonistas podiam dialogar e até entender-se. Esquecemos com freqüência que Freud foi neurólogo de profissão, mas, depois do seu Esquisse d’une Psychologie scientifique de 1895, os múltiplos avatares da psicanálise cindiram-na das suas bases propriamente biológicas. Este reatar do diálogo com as ciências “duras” será um indício de uma evolução das idéias, de um regresso às origens e porque não, até de um novo ponto de partida?(Changeux, 1985: 9) A discussão feita neste artigo mostra que este “reatar do diálogo”, 25 anos depois do texto original de Changeux, parece longe de acontecer. Ciências diferentes têm visões diferentes do que seria uma “evolução das idéias” e mesmo de um “regresso às origens”. física/orgânica e por outro moral/psicológica, e abraçou um novo paradigma de viés radicalmente fisicalista, “com a adoção de uma perspectiva monista caracterizado por um fisicalismo de corte especial, francamente reducionista” (p.161) Talvez um limite a este possível diálogo tenha sido colocado por correntes como o ‘materialismo eliminativista’, que apresentei brevemente aqui. Ao que parece, a convivência de noções como ‘cérebro’ e ‘mente’ existe no discurso neurocientífico com uma hierarquia muito bem marcada, a qual grande parte dos praticantes de ciências ‘não- duras’ não aderem. Em um nível, podemos falar da diluição do dualismo corpo/mente; em outro, corpo e mente continuam a ser termos aos quais o paradigma neuro- psiquiátrico faz referência, mas seria necessário localizá-los em uma relação hierárquica, Pesquisas relacionadas ao cérebro e as políticas dos laboratórios farmacêuticos estão sob fogo cerrado no campo do debate intelectual; no campo da divulgação midiática, por outro lado, a balança pende violentamente a favor de uma certa noção de ‘pessoa’ que incorpora valores e crenças que emanam do campo da neurociência. Referências bibliográficas ANDREASEN, Nancy. Admirável cérebro novo: vencendo a doença mental na era do genoma. Porto Alegre: Artmed, 2005. BEZERRA JR., Benilton. 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